Fazenda do Demônio

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Depois de pouco mais de um ano, tive que voltar à Fazenda do Demônio, como eu passei a chamar o lugar. Não me lembrava do nome da fazenda, mas seria com certeza algum nome idiota. Eu estava nervoso, não só porque foi depois da primeira visita a essa fazenda que meu mestre começou a mudar, até decidir ir embora de vez, mas porque eu já não era mais um Nume, não deveria ser eu respondendo ao chamado do fazendeiro. Mas eu havia feito um juramento, ao mestre Ângelo, de cumprir a parte dele no acordo: me livrar do pequeno demônio que atazanava a fazenda – sem matá-lo.

Cheguei na cidade – mais para vila – e percebi que não me lembrava exatamente em que direção ficava a fazenda. Esforcei-me o máximo que pude para lembrar, mas terminei aceitando que teria que perguntar. Escolhi o bar.

"Boa tarde-" eu hesitei – odeio falar com estranhos. Os três homens no balcão me olharam como se eu tivesse duas cabeças. Ou talvez fosse só as roupas de gente da cidade que eu usava. Continuei, porque não tinha outra opção agora. "Eu procuro uma fazenda-" um deles riu, mas eu o ignorei. "Não me lembro do nome dela, nem da família, mas é onde mora um casal com três meninos e a filha mais velha, Cláudia". Para meu desespero, eu só conseguia me lembrar dos nomes da mulher meio louca e de seu filho morto-vivo, Samuel – mas este eu não quis mencionar. O homem que começara a rir, debochando de mim, parou. Notei que todos ficaram sérios.

"É a Água Velha, do Inácio e da Amelinha. Sai da cidade e segue mais uns sete quilômetros e cê vai ver a porteira, mas-"

O homem que riu o interrompeu, agora sério:

"agora chama Fazenda Samuel, Jão." disse, olhando para o homem que falara primeiro. Então se virou para mim: "E o que o Jão ia dizer, moço, eu acho, é que se fosse você, não ia lá, não. Aquele lugar é mal-assombrado". "Ah, eu sei disso. Por isso eu tô indo pra lá".

Cheguei na fazenda no que seria para mim a hora do almoço, mas todos já haviam almoçado e os homens estavam no campo, exceto Camilo, o mais velho dos garotos. D. Amélia, a fazendeira, me contou aos sussurros, na cozinha, que ele fora até a cidade para mandar mensagem a Ângelo e não voltara. Ela estava aliviada pelo filho.

A velha também me contou da rotina na fazenda. Alguns meses depois da nossa partida - ela relatou - Samuel começou a sair com mais frequência durante as noites, e não só para o telhado. Animais começaram a aparecer mortos e meio comidos, primeiro na Água Velha, e depois nas fazendas vizinhas. Seu marido se juntou aos vizinhos na busca pela onça que os vinha atacando, apenas para não suscitar suspeitas. Ao ser confrontada, para que controlasse o filho, Cláudia argumentou que ele precisava comer, e que a mãe bem sabia que ele não era como as outras crianças. A partir daí, a moça passou a oferecer a Samuel animais da fazenda quase todas as noites, no galpão.

Assim o demônio percebeu o poder que teria sobre os humanos, se quisesse. Ele percebeu que era temido, e ficou cheio de si, até confundir esse temor dos humanos com adoração. Agora, ele exigia os melhores animais da fazenda todas as noites, ainda que nem sempre se alimentasse deles. Exigiu a mudança do nome da fazenda, que havia sido originalmente batizada em referência ao poço ao lado da casa, que fora o primeiro a ser aberto na região. No início, a família tentava resistir às exigências mais estapafúrdias de Samuel, mas sempre que isso acontecia alguém adoecia, ou a horta murchava e apodrecia durante a noite ou a plantação começava aos poucos a secar. Ele havia proibido a saída de qualquer um da fazenda, e Camilo escapara escondido, nem mesmo sua mãe sabia como.

Naquela tarde, levei comigo o chocalho que Ângelo ganhara de algum amigo indígena cujo nome eu já esquecera, que servia para confundir os espíritos mais fracos. Levei uma caixa de ferro grande o suficiente para caber uma criança, uma corrente também de ferro e uma tocha, mas deixei as armas no carro. Iria prendê-lo, não matá-lo.

Encontrei-o no celeiro no começo da noite. Ele não se parecia mais com uma criança de cinco anos. Estava tão alto quanto um guri de uns oito anos, a pele azulada e de aparência úmida, pegajosa. No celeiro, o odor era de podridão, não como de fezes animais, mas de decomposição e morte. Antes que eu pudesse começar o ritual, ele falou comigo:

"Você veio para ser meu presente de hoje? Mas que boa ideia, pessoas são mais legais do que bois!" Ele sorria quase como uma criança, mas com dentes afiados e lábios meio podres, deformados.

O ignorei e comecei a recitar o ritual decorado especialmente para aquele momento e bater o chocalho no ar. Ele me olhou surpreso por um instante e então riu.

"Acho que esse brinquedo deveria me assustar, né? Mas não está funcionando, não."

Ele estava mais forte do que eu previra, e o chocalho não serviria. Teria que me aproximar um pouco e usar a corrente. Comecei a me arrepender de não levar a tocha já acesa. Será que eu o subestimara? Larguei o chocalho e dei um passo à frente. Não tinha certeza do que deveria fazer.

Então ele decidiu por mim. Com um salto, reduziu a distância entre nós para menos de meio metro. Perto demais para eu arremessar a corrente. Merda! Afastei-me alguns passos. Ele se aproximou devagar mas sem cautela, como se estivesse se divertindo. Comecei a me afastar novamente e passei a recitar o ritual mais alto.

Ele foi rápido. Saltou novamente e eu antecipei o lançamento da corrente sobre ele. Errei por mais de um metro, perdendo a corrente das minhas mãos. Pensei em pegar o isqueiro para a tocha, mas ele já estava sobre mim. Caindo de costas, derrubei a tocha também. Eu ia morrer.

Esse pensamento me fez pensar na inutilidade de continuar recitando o ritual e me calei. Enquanto o demônio-criança aproximava a boca afiada do meu pescoço, ouvi a voz de Ângelo gritando na minha memória "as palavras do ritual não tem sentido se você não der sentido a elas". Eu estivera apenas repetindo as palavras em latim, nervoso demais para pensar em seus significados, que eu conhecia graças às aulas de Ângelo. Comecei a recitá-las de novo, com atenção, e Samuel hesitou. Foi o suficiente para que eu o empurrasse e rolasse para o lado. Alcancei a tocha caída.

Decidi que ele era mais forte do que eu previra, e eu teria que abandonar o acordo de Ângelo. O demônio iria morrer. Acendi a tocha, agora gritando cada palavra que repetia. O cheiro doce do óleo que queimava, misturado ao cheiro de podridão, fazia arder meu nariz. Samuel fora pego de surpresa, mas já se recuperava e se preparava para me pegar de novo, agora com mais cautela. Ou será que as minhas palavras o deixavam mais lento?

Sem tirar os olhos dele, peguei a corrente do chão e arremessei-a. Ele esquivou, mas lento demais. A corrente bateu em sua coxa e foi se enrolando perna acima, até o tronco, feito cobra. Ele caiu no chão, gritando de dor, mas ainda teve forças para tentar soltar a corrente que o queimava e apertava. Aproximei-me com a tocha. Sem minhas armas, teria que queimá-lo.

O demônio gritou, e depois começou a guinchar. Parei de recitar o ritual que o prenderia à minha vontade e passei a recitar palavras que o expulsariam desse mundo. Por cima de seus guinchos, ouvi um grito agudo:

"Espera!" Era D. Amélia. Ela parou à entrada do celeiro: "Eu o trouxe a vida, quando meu marido o matou, então, se ele não pode viver, eu devo matá-lo."

A minha vontade era mandar a velha à merda, mas pensei que, se fosse ela a matá-lo, eu não estaria descumprindo a minha promessa a Ângelo e nem ele poderia ser acusado de descumprir o acordo feito com ela, meses antes. Corri, peguei o chocalho e o sacudi enquanto recitava um encanto indígena para conter espíritos malignos. Deu certo dessa vez, Samuel fixou o olhar no chocalho e se calou. Mas continuou contorcendo-se.

A velha se aproximou de mim, evitando olhar o demônio caído na minha frente, e me entregou um embrulho. Era uma tira de pano tingido de vermelho que envolvia algo azulado e pegajoso, como a pele de Samuel. Era um pedaço de seu cordão umbilical. Fazia sentido, algumas famílias guardam essas coisas como lembrança, e algumas pessoas com um certo conhecimento poderiam fazer feitiços de preservação da vida com coisas mais simples que isso. Quem imaginaria que a velha D. Amélia era meio bruxa?

A fazendeira queimou o embrulho ali mesmo. Aos poucos, os olhos amarelos de Samuel, fixos no chocalho que eu segurava a seu lado, foram perdendo a cor, assim como todo seu corpo, que escurecia e encolhia como se queimasse também.

Deixei a fazenda poucas horas depois, depois de queimar e enterrar os restos do demoniozinho. Nunca soube do destino da família, do paradeiro do filho mais velho ou da sanidade da mãe da criança, mas às vezes sonho que a criatura voltou e matou a todos.

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⏰ Last updated: Mar 22 ⏰

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