2.2. o verão

626 102 83
                                    

Na manhã seguinte, as primeiras impressões deixadas por Sky Hunter foram reforçadas quando ela me convidou para um café da manhã na praia.

Às duas da tarde.

Há essa altura do dia já tinha até almoçado mas mesmo assim segui até Baker Beach onde ela me esperava com sacolas do IHOP.

— Você tá atrasada.

Sua reclamação soava como a de uma criança birrenta chorando sem razão.

— E você se atrasou apenas 6 horas para o horário do café — contraponho, sentando ao seu lado sobre a toalha.

— Desculpa. Eu planejava te chamar pra ver o sol nascer mas acordei meio tarde.

Ela nem parece envergonhada, apenas dá de ombros com displicência e começa a tirar toda a comida da embalagem. Olho pasma a sua cara de pau.

— Massss — fala prolongando o "s" — vou te compensar com comida boa, conversa furada e música de qualidade. Tem algo melhor?

E não, não tinha melhor. Naquela tarde, ficamos empanturradas de panquecas de chocolate e omeletes de presunto, dividindo uma Cherry Coke enquanto descobríamos uma a outra. Falamos de sonhos, animais de estimação e hobbies. Descobri que Sky ama gatos pois se identifica com eles (nas palavras dela "assim como eu, o melhor jeito de mantê-los por perto é deixando-os livres"). Ela tem um bichano chamado Ruffles por causa da batata, toca três instrumentos mas seu favorito é o violão e compõe desde os 14 anos. Não falamos de família, faculdade ou profissões. Como eu, ela precisa de um tempo disso.

Mas o momento que eu sempre vou lembrar foi o Sol se recolhendo e lançando seus raios em várias matizes de laranja e amarelo, colorindo tudo a sua volta: o céu, a Golden Gate e Sky.

Os feixes incidiam sobre seus cabelos rubros deixando-os em um tom vermelho vivo. Cabelos esses que, por suas brechas cacheadas, acolhiam a luz e a repousava sobre as maçãs respingadas de sardas. Por sua vez, a constelação sardenta concentrava-se em torno dos seus olhos de ouro derretido. Em volta dela, a luz solar era sua auréola, brilhando como fogo e a abraçando enquanto ela tocava o violão e cantava sobre gostar de uma garota que não a notava da mesma maneira.

E eu me perguntava como ela não enxergava Sky se naquele momento ela era tudo o que eu via e conhecia, todo o resto tornando-se um grande borrão. E minha câmera retratou isso fotografando-a de várias maneiras e ângulos, mas ela sempre no centro. Meu coração batia descompassado e eu disse a mim mesma que era por causa da fotografia.

Depois daquela tarde incrível fomos para seu apartamento e eu não podia imaginar que o melhor estaria ali.

Ele era o típico lar de um jovem solteiro: pequeno, bagunçado e muito particular.

O de Sky era quase um autorretrato. O toca-discos e os LPs em um canto refletiam suas roupas dos anos 90 e seu gosto musical. Uma almofada redonda com orelhas de gatinho enfeita o sofá com um amontoado de roupas e um Ruffles dormindo sobre ele. Rapidamente entendo o que Sky falou sobre gatos mais cedo quando o seu recusa meu carinho e vai embora do sofá.

— Eu não sabia que você é fotógrafa — comenta sentada de frente para mim onde antes Ruffles dormia.

— Você ainda nem viu as fotos — acuso e ela me dá um daqueles sorrisos sabe-tudo. — E você? Qual seu talento secreto, qual faculdade você quer fazer?

— Os talentos que eu tenho você já conhece e eu não quero fazer faculdade.

Não fazer faculdade para mim não é nem uma opção e é praticamente inconcebível.

— Por que?

— O que eu preciso saber faculdade nenhuma pode me ensinar.

Minha boca se abre em choque. O que uma faculdade não poderia ensinar? Sky ri com aquele escárnio da noite anterior e eu não gosto.

— Você também não precisa dela.

— Eu quero ser cirurgiã, não açougueira. É claro que preciso — digo um pouco ríspida.

Ela nada diz, apenas se levanta e vai até sua cozinha de onde volta com uma cerveja na mão. O silêncio indefinido me incomoda e antes que me controle estou falando.

— Medicina é a profissão mais nobre que tem, é sobre salvar vidas, exige muita especialização.

Ela assume aquele olhar crítico e depreciativo enquanto arqueia a sobrancelha direita e toma um longo gole da cerveja.

— Você não tem que me provar nada, Millie — diz após incontáveis segundos.

— Eu não preciso provar nada pra ninguém.

— Não? — Aquela risada de desprezo. — E o que você fazia no bar?

Minha boca se abre três vezes mas nada sai. Ela parece me conhecer de uma vida inteira.

— Meu tio falou que eu não consigo me divertir sozinha e ser jovem.

Ela ri com divertimento e nem meu olhar frio a para.

— Como você sabia?

— Porque era claro que você estava desconfortável, não estava ali por vontade própria.

Agora estou exatamente assim.

— As coisas que são verdadeiras não precisam ser provadas. Como seu amor pela fotografia.

Permaneço em silêncio e sem encará-la por muitos instantes até que quando decido falar sai um fio de voz.

— A memória do meu avô era um novelo de lã. Um emaranhado de lembranças interligadas que faziam ele ser o que era, mas era frágil também e sob o efeito do Alzheimer não resistiu. Ele esquecia tudo, apenas as fotos o lembravam da vida que ele teve. Então eu entendi que as memórias se desgastam com o tempo mas as fotografias são fixas e imutáveis. Eu fotografo tudo o que eu quero me lembrar algum dia.

Sky escolhe não falar nada mas segura minha mão firmemente entre as suas. Olhando-a, eu percebo o que estava ignorando: eu quero me lembrar dela. Cada foto tirada foi com o intuito de não esquecê-la, isso seria meu pior pesadelo agora.

Meu coração bate descompassado novamente e dessa vez não tento me convencer de nada. É ela.

Dominada pela adrenalina e pelo sangue correndo rápido em minhas veias, colo meus lábios ao seus e então tudo desacelera. Eu posso sentir e ouvir tudo. Dedos resvalando em minha pele. Respirações me fazendo arrepiar. Sucção e atritos. A cada roupa que sou despida, me dispo de uma opinião também. Cada pele exposta é uma verdade antes oculta. Cada barreira ultrapassada para chegar até o quarto é um padrão quebrado e uma expectativa deixada para trás. Abraçando e amando Sky, abraço e amo meu verdadeiro eu.

E enquanto todas as minhas certezas de uma vida são destruídas, a única coisa que sei é que depois do verão nada será o mesmo.

E enquanto todas as minhas certezas de uma vida são destruídas, a única coisa que sei é que depois do verão nada será o mesmo

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.
Depois Do VerãoWhere stories live. Discover now