Capítulo 1

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— E então ele perguntou: aqui chove assim todo dia? E eu respondi: não, imagina! Tem dia que dá cada temporal!

Foi com essa piada do Uber que inaugurei minha estadia na maior cidade do país, a capital das instabilidades climáticas. Aqui, não importa o tamanho do sol que nasceu pela manhã, nunca é recomendado sair de casa sem um guarda-chuva e um casaco. Não fosse uma selva de pedras cinzenta, onde a maioria dos cidadãos se veste de preto, seria um lugar tão verde quanto Forks, a cidade dos vampiros.

Desembarquei numa tarde fria e úmida de terça-feira, e segui direto para uma reunião. Não estava atrasado porque todos estavam à minha espera. Eu estava assumindo uma empresa depois da morte de um sócio e do divórcio litigioso de outro, e tinha muito o que fazer. Pesava ainda o fato de que o sócio falecido era o meu pai, que tinha anos que eu não o via, e que desde a sua morte uma chuva de problemas teimava em cair sobre mim, por ser seu único herdeiro.

Falando em chuva, ela me acompanhou na chegada à empresa, nas várias reuniões que organizei para solucionar as pendências, e nas excursões que fiz em busca de um lugar para morar. Acabei por me fixar numa dispendiosa cobertura após negociá-la com o ex-sócio de meu pai, e encerrei as buscas.

Como tenho a mobilidade reduzida, a chuva me incomodou demais nos primeiros dias. Sempre acabava me molhando, mesmo em dias de chuva fina, ao entrar e sair dos carros, lojas e afins. Com o tempo, fui me acostumando e me adaptando, e numa bela manhã estranhei o fato de estar fazendo calor e o céu estar azul. Não gostei. De alguma forma, não combinava com a imagem que eu tinha formado daquela enorme cidade cinza. No calor, as pessoas tinham que tirar seus blazers, suavam ao andar pelas ruas, e os faróis obrigatórios desperdiçavam seu brilho.

E então, numa tarde comum do mês de abril, a chuva voltou. Foi de repente, sem nenhum aviso. Nem mesmo os jornais traziam a previsão. Eu estava numa cafeteria próxima à empresa, onde eu ia toda tarde, e pelas portas envidraçadas vi como as pessoas se adaptavam rapidamente à mudança no tempo. Os nativos sacavam seus guarda-chuvas e impermeáveis e seguiam seus caminhos, enquanto alguns desavisados, ou aqueles que não tinham pressa, se refugiavam no comércio. Assim, a cafeteria lotou, e o barulho de vozes minou a atmosfera do meu refúgio perfeito. Uma funcionária me estendeu um olhar preocupado, e eu fiz um gesto indicando que estava tudo bem.

Entediado, pedi outro café. Terminei. A saída estava obstruída por casacos pretos que relutavam em sair, então decidi esperar. Além de não estar com pressa, eu precisava de espaço para andar com segurança. Perdido em pensamentos, me limitei a avaliar as costas das pessoas. Achei-as tão parecidas umas com as outras. Monótonas, como o fluxo de carros que descia aquela avenida todos os dias. Invisíveis no meio da multidão.

E então, no meio da profusão de casacos pretos, alguém se virou, e mesmo tendo várias faces voltadas para si, foi em mim que focou. Tinha me visto antes, talvez. Não foi em nenhum defeito do meu corpo que mirou, como era de se esperar, mas no meu rosto, nos meus olhos. Isso sempre mexia comigo.

Tendo sido notado, decidi retribuir o olhar e demonstrar interesse. Quando vi seu rosto, porém, o tempo parou para mim. Seus cabelos louros escondiam um dos olhos, e emolduravam seu sorriso tímido. Retribuí o sorriso, mas estático, incapaz de olhar para os lados. Sabe quando você sente o coração acelerar e nem acredita que está acontecendo? E quando você troca sorrisos com alguém como se o resto do mundo estivesse congelado? Como quase duas décadas antes, com a menina nova no ônibus da escola. Eu só me lembrava dos seus olhos, um de cada cor. E dos seus dedos trêmulos que tocaram os meus debaixo da cadeira velha. Na tarde seguinte, você muda de ônibus e nunca mais a vê, e passa a procurar seus cabelos emaranhados pelo vento aonde quer que vá, pelo resto da vida.

Depois da Tempestade - DEGUSTAÇÃO Onde histórias criam vida. Descubra agora