Capítulo XII

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Fumaça se esvaia da cuia que a ducit segurava próximo aos lábios, a levou à boca e sorveu com prazer o conteúdo – uma mistura de ervas e legumes para fortalecimento físico e astral. Maior fumaça escapava do caldeirão e, após servir as demais cuias, entregando-as às desconfiadas jovens, espalhou-a com a mão pelo ambiente de luz escassa. Como o derrubar de uma cortina de teatro, a forma acinzentada dançou no ar, construindo um monólogo etéreo de uma história antiga.

O mundo ainda não era mundo. Não o mundo como conhecemos. Tudo era etéreo e disperso no espaço como poeira ao vento. Mas então Tupã cria a Mãe Terra e nela desenha a forma dos solos, das águas, dos vegetais e dos animais. Cria o primeiro ser humano, Tupi-mirim, etéreo e incapaz de habitar o mundo físico, aprende caminhando por todas as direções da Terra os segredos da existência material. Ele auxilia o Deus Tupã, "espírito do trovão", a criar todo o resto. Mas não era o tudo. Com o dom da palavra e a partir das águas, ele cria a primeira mulher, Mavutzinim. Ela não acreditava que o mundo estava completo e continuou a criar, trouxe à Terra todas as cores, gostos e perfumes nos novos animais, frutas e flores. Mas não era o tudo. Ela queria que eles não vivessem sozinhos, então trouxe à Terra as primeiras tribos – vermelhos, azuis e amarelos –, crianças frutos de sementes e do canto. Eles ensinaram tudo aos seus filhos e netos, e com eles viveram por muito tempo.

A soror assistia atentamente as expressões que percorriam os rostos à sua frente, os olhos vidrados na fumaça que desenhava figuras como num filme noir e na sua voz, ecoando de forma melodiosa a raiz da sua existência, a fonte de energia e poder que as tornaram o que são hoje e determinaram seu destino. Lhe trazia uma deliciosa sensação contar de forma mágica a história de seu povo, a aproximava mais de um passado que estava desgastado, sendo destruído e assassinado pouco a pouco pelos humanos.

― Quando se cansou, Tupi-mirim devolveu seu corpo à Mãe Terra e ascendeu aos céus na forma do Sol. Mas ele não abandonaria suas criações, acompanharia-os para todo o sempre do alto. Guaraci, o Deus Sol. Depois de um tempo, foi a vez de Mavutzinim abandonar seu corpo e ascender aos céus na forma da Lua. Mas ela não abandonaria suas criações, acompanharia-os para todo o sempre do alto. Jaci, a Deusa Lua. Guaraci e Jaci, irmão-marido e irmã-esposa, protegiam a Terra pelo dia e pela noite.

A bela mulher sorveu mais da mistura e respirou fundo antes de continuar, o leve sorriso do seu rosto ficando menor à medida que a parte mais importante chegava.

― Há a história não contada, guardada à sete chaves para os poucos que a ela estão amarrados, para àqueles que o sangue que corre nas veias é o mesmo sangue dos primeiros filhos de Guaraci e Jaci, os filhos do Sol e da Lua.

"A tribo azul chorava toda noite com a partida de Mavutzinim, gritando aos céus, mirando a Lua, que ela retornasse e caminhasse sobre a Terra, ignorando pelo dia as obrigações para sua sobrevivência. A tribo amarela exigia de seus companheiros que voltassem à razão e às suas atividades rotineiras ou acabariam mortos por amor à Deusa. O tempo passava e a vigília continuava. A tribo amarela então resolve clamar aos céus, mirando o Sol, que Tupi-mirim ajudasse seu povo."

"Ao fim de 30 dias, Jaci, sem suportar assistir ao sofrimento de seus filhos, desce à Terra na sua forma humana, para acalentá-los. Guaraci, ao raiar do dia, percebe na Terra a presença de sua irmã-esposa, num misto de saudade e raiva, volta em forma humana para recriminá-la pelo ato. A tribo azul, ao ver a ira cair sobre sua amada, volta-se contra ele, que se surpreende pela desobediência de seus descendentes. A tribo amarela, observando a cena estupefata, defende Guaraci, batalhando com a tribo azul em nome do Deus Sol."

Uma pitada de compreensão começou a perpassar pelo rosto das presentes, como se despertasse dentro delas uma resposta há muito escondida.

― Pelo dia, a tribo amarela se fortalecia; pela noite, a tribo azul. Na passagem da noite para o dia, suas forças se igualavam e assim, ninguém vencia. Depois de três dias e três noites de luta, Tupã lançou raios que dividiram a batalha ao meio, podia se ouvir o estrondo do trovão nos céus. Ali, ele amaldiçoava os filhos de seus filhos pela desobediência e fraqueza, pelo amor e pelo ódio: dali em diante, os homens que contivessem o sangue da tribo amarela e as mulheres o sangue da tribo azul viveriam em desejo mútuo de atração – enxergariam no outro o mais poderoso prazer material, carnal – e de morte – ansiariam por arrancar do outro, sua vida.

Stellae - A maldição do Sol e da Lua [LIVRO I - COMPLETO]Where stories live. Discover now