TRANSLUCIDAMENTE

21. Lobo em pele de cordeiro

Eu ainda estava perplexo. João Pedro era irmão de Fabiano, o homem santo da comunidade que levava LGBTs carentes vítimas de violência para atendimentos gratuitos e cuidados na ONG; detalhe: acabo de descobrir que tem noiva, mas, adora dar a bunda. Um típico perfil hipócrita de bom Samaritano. É o que chamamos de lobo em pele de cordeiro.

Cansei de ver tipinhos como o dele por aí: empresários, ricos, filantropos, agitadores sociais, pastores, padres, bispos, professores, médicos e uma série de pessoas blindadas por suas boas ações e títulos profissionais de modo que ninguém imagine o mau-caratismo e a truculência dessas sobre as suas vítimas, geralmente frágeis dependentes. É uma classe que escolhe bem a sua vítima. Age pela coerção psicológica bem mais do que pela força. São raros os casos de uso da força. Quando usam, geralmente terminam em morte, num grande feito parecido com uma produção cinematográfica para marcar. Todos ficam estupefatos!

Ninguém vai se surpreender nunca quando souber de um abuso cometido pelo pobre. Se for preto, mais esperado ainda e, se, miserável, torna-se uma via de regra. Pobre é bandido e está implícito em seu julgamento moral a falha de caráter. A sociedade ainda não se despiu de preconceito com o crime sexual para com as classes mais desfavorecidas.

Por mais que saibamos de tudo isso, quando o caso se aproxima da gente, toma magnitude e nos mobiliza. Para mim que cansei de estudar casos assim, choca bem menos, mais ainda choca. Ainda mais quando o caso envolve irmãos. Como pode um sujeito coagir o irmão mais novo e em formação? No mínimo é um doente!

Eu não o conhecia antes, não estou apto a avaliar sua conduta moral e sanidade mental, mas senti que ele estava tenso e alterado durante a reunião. De fato, ele está escondendo algo. As peças do quebra-cabeça começam a se encaixar. O menino disse que eu não podia comentar com ninguém o seu ato sexual porque o seu abusador poderia ser preso, certamente foi orientado pelo próprio irmão.

Muito chata esta situação. O que fazer? Se a Ellen estivesse por perto com certeza me apoiaria qualquer decisão que eu tomasse, mas, assim, sozinho, estou com medo de errar tomando a decisão acertada.

O que me pesa são as consequências.

Se eu levar o caso adiante, João Pedro pode sofrer retaliações, afinal ele mora com o abusador sob o mesmo teto. Não tem muro que os separe. As medidas protetivas nesse país são falhas e, outra, eu só tenho uma declaração do menino. Ele pode voltar atrás por medo e eu sair dessa histórica como um mentiroso.

Estava tão envolvido nessa descoberta que não notei que Tulipa já estava na sala. Ela tinha um lindo brilho nos olhos. Não poderia deixar um caso apagar o brilho dela. O jeito era eu ser forte com as minhas neuras e seguir adiante.

— Oi Tulipa, como se sente?

— Me sinto ótimo. "Maravilinda"! Acho que é assim que se fala.

— Isso é bom. Me fale sobre essa sensação.

— É uma mistura boa de medo e... de ousadia. Eu falo que sou louca, pois como eu posso sentir as duas coisas ao mesmo tempo? Mas, é que sou ousada mesmo!

— Não sei porque estou tendo a impressão de algo.

— Tipo, o quê?

— Esse brilho nos olhos.

Ela começou a rir. Gargalhou e a gargalhada foi aumentando. Colocou a mão na boca de uma forma que tampasse seus dentes. Mesmo assim pude ver uma pequena falha do descuido, mas, mesmo assim, ela estava bonita. Quando ela acalmou o riso, com as duas mãos jogou os dreads para trás. Estava reluzente. Pele bonita e angelicalmente em paz.

— Desculpa, a crise de riso; mas, eu tô feliz pra caraca. Conheci uma moça. Ela é que nem você, branquinha, inteligente, tem o próprio carro e tem uma loja de roupas no Brás. Acho que ela tem grana, mas, isso não me importa. O que importa é como ela me tratou. Me-ni-no.... -, disse ela como as duas mãos em cone na boca — Ela abriu a porta do carro para eu entrar e me deu a mão e tudo o mais. Nunca na minha vida eu tive isso. Ela entrou no carro e antes de ligar me segurou a minha mão e deu um beijo nela e depois passou ela no rosto com carinho. Ali naquela hora eu já gamei.