X. O DOSSEL

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ELEANOR DEITOU-SE NA cama novamente, puxando os lençóis até o
queixo. Stella sentara-se a seu lado, já vestida para partir, as roupas sujas de
terra manchando um pouco os lençóis brancos. Podia ver agora as manchas
nos braços da garota: não eram azuis como as de Sebastian, mas verdes como
jade, as mesmas veias brancas por debaixo das placas frias, mais polidas do
que as de seu pai, mais flexíveis. Uma pequena evolução da espécie: falava
com mais facilidade do que ele, em um tom de voz mais claro.

À luz fraca do
abajur, Eleanor via como as duas se pareciam

— como Stella tinha o mesmo
perfil da avó que nunca conhecera, a mesma curva do queixo e do nariz.
Como os cachos de seu cabelo caíam nos seus olhos exatamente como
Sebastian.

Elas só se viam em sonhos, na imaginação sempre quente de Eleanor:
porque ela aceitara os termos do acordo, tivera que aceitar também a
distância dos mundos, ser mãe apenas em instantes pequenos durante o sono.

Como seria agora? E como seria com Mark? As dúvidas ainda lhe corroíam o
cérebro, mas não havia como lutar. A hora chegara: ninguém poderia viver
aquilo por ela.

— Dói? — Eleanor perguntou, tocando o braço frio da filha.

— Dói. Mas já passa. Como você se sente?

— Estranha. — Ela sorriu — Não parece que eu vou morrer.

— Como deveria parecer?
— Não sei. Muda de pessoa para pessoa. Meu pai se queixava de dor.
Tossia loucamente. Minha mãe… Minha mãe via espíritos. Dizia que um
demônio viera lhe buscar.

— Pai disse que os homens deste mundo o chamavam de demônio.
Talvez sua mãe também tenha estado com um de nós no passado.

Eleanor riu um pouco, fechando os olhos. Por que não? Teria sido
alguma alegria para a velha senhora. Mal se lembrava dela: passara mais
tempo de vida sem sua presença do que ao seu lado.

Sua mãe cheirava a
capim-limão e lavanda, era o que mais lhe vinha à mente: um odor de Verão,
de vida nova, de um mundo do qual ela começava a sentir saudade. Tinha se
acostumado com a ideia da vida, com a passagem do tempo, a mudança das
estações. Acostumara-se com a decadência de seu castelo de vidro, com o
luto pelo marido, com a distância dos filhos em sonhos ou em quarteis, com a
saudade que sentia de Sebastian quando estava acordada e a do pai de Mark
quando estava dormindo.

— Você disse a seu filho o que aconteceria?

— Achei melhor não. Ele iria fazer perguntas… E na certa ele não iria
gostar das respostas. Não creio que minha raça compreenda despedidas muito
bem.

— Oh... Espero que ele não me culpe!
— Eu não acho que ele teria como saber, meu amor.

— Ela forçou um
sorriso, respirando fundo.

— Você promete uma coisa? Que vai olhar por
eles de vez em quando? Ele e a esposa que um dia virá. Eu me preocupo.
Mark é como o pai dele… Como o avô. Sem a menor ideia de como viver…

— Mãe. Ele saberá. A guerra vai lhe ensinar. — Stella suspirou, uma
mão acariciando os cabelos grisalhos de Eleanor. — É horrível dizer isso. Até
eu sei. E sinto muito por dizê-lo. Mas ele saberá como cuidar de si. E dos que
virão com ele. Por ele. Não se preocupe. Apenas… Apenas descanse. Está
terminando.
Eleanor fechava os olhos e sua respiração parecia mais leve. O sono era
inevitável: a passagem começara. Stella permaneceu ali, em silêncio, os
dedos compridos tocando o dossel da cama, o pouco sangue que tinha em si
pulsando em suas unhas contra a madeira envernizada.

E Eleanor, à medida em que o torpor lhe tomava em ondas, lembrava de
outra noite, um mundo que não existia, a memória que nunca lhe abandonara
em todos aqueles anos: o corpo de Sebastian, enfim dormindo, exausto, mais
humano do que ela jamais seria, debaixo daquele céu estrelado. Era para ele,
para aquela noite, aquela floresta, que ela sempre voltava quando estava
acordada. Era para o que deixara para trás, um ano que se passara como uma
noite em seu mundo: para Stella que deixara nas mãos dele, para a promessa
que ele fizera de que ela voltaria quando fosse a hora.
E antes de perder a consciência, ela notou o perfume das flores uma vez
mais, forte e adocicado, como aquela noite de nevasca tantos anos antes. As
glicínias de novo: aquilo que Sebastian lhe deixara e tudo o que veio depois

— o pai de Mark, que também amava aquelas mesmas flores, que tinha lhe
pedido em casamento debaixo daquelas mesmas flores, mas não tinha talento
algum para fazê-las florescer.

E Mark, que crescera debaixo daquelas flores.
E Stella novamente, fruto de sua curiosidade, acariciando seus cabelos em
silêncio.

Quando Mark entrou no quarto na manhã seguinte, tendo que arrebentar
a porta trancada porque Eleanor não respondia seus chamados e a tal Stella
não estava em lugar nenhum, foram as flores o que ele notou primeiro: uma
cortina viva de glicínias e lírios, de damas-da-noite e heras, uma revolta de
tons de púrpura e verde cobrindo toda a extensão da cama, pendendo do teto
e dos balaústres.

Quando ele conseguiu arrancar as plantas, abrindo um
caminho e cortando-se com espinhos afiados que nunca tinha visto naquele
tipo de vegetação, viu a mãe deitada no leito, fria, um sorriso aliviado no
rosto já drenado de sangue, azevinhos e relva florida como cobertor e
travesseiro.

Nunca parecera tão feliz aos seus olhos, nunca estivera mais
tranquila.

A Casa de Vidro  (CONCLUÍDA)Onde histórias criam vida. Descubra agora