XI. 1919

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ERA NOITE, NENHUM som senão o vento batendo nas vidraças limpas da
estufa, a luz da lua cheia se espalhando pelos jardins.

Já fazia algum tempo
que Mark se dedicara à reforma da casa de vidro desde que retornara das
trincheiras na Bélgica.

Sua esposa gostava particularmente das rosas que
pareciam insistir em crescer em cores chamativas, esgueirando-se na estrutura
de ferro agora pintado de verde-floresta.

O filho pequeno do casal aprendia a
andar entre aquelas alamedas e se ocupava em arrancar brotos do chão,
fossem ervas daninhas ou trevos, ou mesmo plantas por nascer. Havia uma
outra criança, ainda no ventre da mãe. Talvez uma menina? Mark gostava de
imaginá-la como a dona daquele castelo imaginário, como Eleanor um dia
tinha sido.

Se perguntassem a Mark sua planta preferida dentro daquele castelo
imaginado, ele diria que eram as glicínias. Eram o motivo pelo qual as
pessoas vinham de longe para conhecer os jardins da casa: não importava a
época do ano, havia sempre uma cascata de flores em vinte tons de púrpura
em algum lugar da estufa, com seu perfume pesado e envolvente. O que ele
fazia para que aquelas flores tão frágeis, símbolos do verão, perdurassem até
mesmo quando nevava do lado de fora?
Aquele era o segredo que Mark guardava em si e que o fazia andar em
círculos pela estufa durante as noites, quando sua esposa e seu filho dormiam.

Às vezes Stella vinha lhe visitar: nem sempre, mas de quando em quando,
longe dos olhos dos outros ocupantes da residência, junto das plantas,
trazendo com ela as raposas e os corvos brancos. Naquela noite em especial,
ela viera. Estava sentada justamente debaixo das flores roxas, ocupada em
trançar os galhos finos da planta, brotos pálidos escapando entre seus dedos
finos.

— Algo lhe preocupa — Mark disse, sentando-se diante da meia-irmã.

— Por que diz isso? — A voz de Stella parecia ter ganhado mais força
com a passagem dos anos. Ela era mais articulada do que quando tinham se
encontrado pela primeira vez. Certamente mais articulada do que no dia em
que a mãe de ambos morrera, em que ele a encontrara encolhida naquele
mesmo local, escondida debaixo de uma selva voraz de espinhos e folhas
cortantes: a maneira que ela encontrara para se proteger do que ela achava
que era a fúria do soldado com o que tinha ocorrido.

Ele, que sempre soube de tudo, de certa maneira. A mãe lhe contara
histórias de fadas e de jardins quando era pequeno.

E ele tinha sido bem tolo
de acreditar que eram só histórias para que ele dormisse, até o dia em que
precisou ver a verdade. Primeiro ali, naquela casa de vidro, e depois nas
trincheiras, quando tudo o que ele tinha sido se perdera pelo caminho.


Tinham sido as plantas que o fizeram reviver depois do inferno. Uma coisa
era imaginar, outra era ver: uma coisa era imaginar uma guerra ou uma fada,
outra era saber que existiam.

As duas revelações lhe foram brutais, mas ao
atravessar a brutalidade ele encontrou algum tipo de existência. Não era uma
resposta, mas pelo menos um bom começo.

— São seus dedos. — Ele apontou os galhos trançados. — Ocupados
demais em criar. Se você é mesmo filha de Eleanor, isso significa que sua
cabeça está cheia.

— Bem… Talvez eu esteja fugindo um pouco do que me espera. De ter
encontrado o meu eco no mundo. — Ela deixou os galhos de lado,
flexionando os dedos cansados. — E o que lhe preocupa? Seus olhos também
carregam fantasmas.

— Acordei com outro daqueles pesadelos. Ypres... De novo. —
Suspirou

— Às vezes eu me pergunto, sabe? Tantas pessoas melhores do que
eu naquelas trincheiras. Mais honestas. Mais decentes. Com família. Esposas,
filhos esperando. Eles morreram e eu fiquei. Por que?

— Não sei. Não é você quem escolhe o que fica e o que some.
Mark assentiu, olhando um pouco para o alto, para a lua que cruzava o
céu escuro, a luz pálida filtrada pelo cristal das placas transparentes no teto.

Um castelo erguido por capricho, tantas décadas antes. Uma aposta para um
futuro que seu criador não vira, mas que decidira imaginar. E todo o resto que
acontecera… Quem seria capaz de prever?

— Devemos parecer ridículos a seus olhos, não? — ele disse. — Com
nossos desejos fúteis. Ritos sem utilidade. E essa propensão a achar que
controlamos as coisas, que podemos dominar a nós mesmos. Por que ainda
insistem em se envolver conosco?

— Oh, temos muito em comum. Não vemos muito longe. Somos tão
presunçosos quanto vocês. Mas somos capazes de criar coisas belas e vocês
também.

É que vocês pensam muito em conquistas e esquecem do resto. —
Ela riu, puxando um dos galhos floridos para perto do rosto. — Pensam
muito em como são fortes e esquecem que são feitos de vidro!

— Oh, Stella… Mas vidro pode ser bem forte! — ele disse, apontando o
teto.

Stella sorriu um pouco, olhando para onde Mark tinha apontado, os
ramos de flores outra vez brotando de seus dedos sem que ela notasse, a lua
iluminando a terra vermelha, as plantas e as flores, imutáveis apesar de tudo.

A Casa de Vidro  (CONCLUÍDA)Where stories live. Discover now