A HISTÓRIA DE VÂNIA

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Vânia já não andava sozinha. Fizera amigos. Poucos, é bem verdade, e a maioria interessada apenas em ter alguém inteligente de quem colar nas provas. Mas eram amigos.

Havia a Sumiko, que todo mundo vivia perturbando e chamando de "japona". Outro era o Tiãozinho, que, apesar do nome, era lourinho e dono dos olhos azuis mais bonitos da escola. Contei mais alguns que nem eu nem a minha turma — Bárbara, Carmita, Vivi e Tatiana — conhecíamos direito. De qualquer forma, Vânia não estava mais andando sozinha pela escola.

O fato de Vânia estar começando a ser aceita aborreceu Carmita ainda mais. As piadinhas aumentaram muito e tomaram-se tão variadas — algumas realmente bem malvadas—que numa ou noutra ocasião acabei sentindo pena da Vânia. De vez em quando, até mesmo a Carmita sentia que estava indo além da conta, exagerando na dose, e ficava meio sem jeito. Mas como é que ela ia parar? E isso que acontece quando a gente coloca uma máscara por muito tempo. A gente simplesmente não consegue mais tirá-la.

Carmita sempre fora implicante, mandona e cheia de vontades, mas ultimamente estava demais. Eu e Vivi chegamos a falar com ela. Pedimos para dar um tempo. Ela se aborreceu ainda mais e aí sobrou para nós, principalmente para mim...

— Por que você está se doendo tanto por ela, Bel? Descobriu algo de novo nela ou foi em você mesma?

Sei não, mas notei que Carmita estava querendo insinuar alguma coisa. Ela começou a fazer questão de perceber que eu era "moreninha" a partir daquele dia.

Não que já não tivesse visto antes (mas que bobagem!), não é isso. Acontece que antes parecia não ter a menor importância. Antes não dava para se fazer facilmente uma comparação. Antes eu era a amiga que ela carregava pra tudo que era lado. A filha do advogado Eduardo de Souza Campos (o que também pesou e muito quando fui aceita no Colégio Harmonia). Pagava isso, pagava aquilo, pagava tudo.

Medo. Fiquei com medo.

Medo de quê?

Não sei. Apenas medo, muito medo.

Perder a amizade da Carmita e das outras?

Ser também chamada de "pretinha"?

Ser pretinha?

Medo. Muito medo.

Fiquei com raiva. Também não sei por quê, mas fiquei com raiva da Vânia.

Se ela não estivesse ali, aquilo com certeza não estaria acontecendo. Eu não estaria com medo.

Passei a implicar com ela tanto ou mais do que Carmita. Queria ser diferente. Ninguém ia me confundir, ninguém ia achar que a gente era igual.

Igual?

Não, a gente não era igual. Não era mesmo.

Todo mundo tinha de saber isso.

Volta e meia, eu estava mexendo com a Vânia. Dizia coisas ruins, zombava de sua aparência, imitava seu jeito de falar e de andar. Gaguejava como ela gaguejava quando era obrigada a falar depressa. Imitava seu beiço vermelho e trêmulo quando a gente conseguia abrir um buraco em sua armadura e quando ela lutava pra não chorar diante de nossas provocações. Um dia, ela não agüentou e me xingou, do jeito de quem não está acostumada ou tem medo de fazer isso.

Ah, pra quê?!

Daquele dia em diante, sempre que ela estava com raiva bastante para nos xingar ou doida para nos estrangular, gritávamos:

— Vagabunda!

Igualzinho a ela.

Eu ria muito dela.

Pretinha, eu? (Júlio Emílio Braz) (1997)Where stories live. Discover now