VI

7 3 0
                                    

   Ultimamente, em minhas palavras expresso derrota, não sei se é possível notar a mudança, mas creio que não, pois essas coisas se manifestam no íntimo do indivíduo, pessoalmente ou em suas conversas mais banais, quando inconscientemente parece pedir ajuda. Eu só precisava conversar com você, Allen, pois considero-o confiável e um bom ouvinte, ainda mais estando morto. Bem, camarada, a vida me derrubou, sabe? Eu estava colhendo flores no campo e ela, impiedosa, apunhalou-me pelas costas com frieza. As palavras agora me faltam e eu já não tenho certeza de minha continuidade em projetos como escrever ou criar esperanças a longo prazo. É tudo muito incerto, e a flecha nem mesmo está atravessada em meu peito, mas em um próximo, sempre junto do meu.
   Allen, como você lida com uma insegurança profunda, um medo de algo ruim que já aconteceu piorar? Meu impasse é cair num lodo, um pântano asqueroso de tristeza e me lamentar por acontecimentos que não estão ocorrendo em mim, mas no meu exterior, diante dos meus olhos, todos os dias, todas as noites, durante todo esse ano. Sinto que sofro demais e me torno um dramático recluso, chorando por fatos marcantes descobertos meses atrás, e com um véu que torna tudo menos sério, mas eu, como escritor amador, tenho a mania insistente de pensar demais, imaginar demais, poetizar demais, problematizar demais, questionar demais, duvidar demais e muitos outros "demais" ligados ao vácuo da criação. Premedito, prevejo, pressinto, e lágrimas caem com preocupações equivocadas que meu cérebro insiste em pregar na parede da consciência, coisas absurdas de perda, morte e dor, que parecem multiplicar de tamanho um monstro de porte desconhecido.
   Os problemas não passam de palavras e as soluções não passam de palavras. Bem, tudo são palavras, e nelas fica a essência das coisas, naquela junção de letras na qual depositamos tanto significado. Venho pensando em tantas nos últimos tempos, verbos, substantivos, adjetivos: "Dormir", "adormecer", "esmorecer", "melancolia", "vermelho", "branco", "consulta", "dolorido", "etc". Minhas preocupações agora são outras, não mais as de um jovem na situação em que eu estava, mas as de um jovem na situação em que me encontro, em que pensar no futuro parece tão nebuloso, e o presente, mais do que nunca, parece decisivo na limitação de trajetos possíveis ou como irei andar sobre esses caminhos, arrastado ou firme sobre minhas próprias pernas. Acontece que eu não quero mais pensar nisso: futuro, pois minha cabeça está cheia demais com o presente, e não posso ocupar com mais nada além do meu sufocante agora, invadindo meus pulmões e permeando meu raciocínio. Antes de tudo eu me preocupava com vestibular e estudos, não que eu deva abdicar disso, mas tudo aquilo parece ignorável no momento. Tolo!
   Na vida, e eu me sinto velho ao declarar tal coisa, tudo é imprevisível, e tenho dito que estou perdidamente vivendo essa afirmação. Me arrependo por esperar algo acontecer para lidar com o fato, mas é quase humano lidar com o presente, e apenas ele. Não prevenimos antes de o futuro alcançar-nos, e daí ele já está sobre nós, e seu nome se pronuncia com "p". Pela manhã o sol já não amanhece tão brilhante quanto antes, pela noite a lua já não é tão bela, e em meus sonhos, mesmo os mais idílicos, minha emoções já não florescem. É nesse trilho de metal, ferrovia perdida, que mais me deixo afundar na água fria e paralisante. Eu não sei dizer o que é pior: Não sentir mais nada ou sentir demais. Já não quero ocupar-me com nada além do problema, pois ele não se vai rápido, ele perdura, no corpo dela, que sangue me deu, e que minha carne fomentou. Podem os ventos pulverizar rochas, podem as marés sumirem, pode o Sol engolir o mundo, podem todas estrelas morrerem, podem surgir planetas, e de todas palavras que conheci, ouvi ou falei, a que mais me feriu até meu curto tempo de vida foi "câncer".
   Sofrer é o menor dos problemas. Os seres humanos, por natureza sofrem, com dor física, como unha encravada, cortes, arranhões, doenças, ferimentos graves, enfim. Ou sofremos por dores mais complexas, como as sentimentais, que perfuram e podem durar toda uma vida. O ruim de sofrer pelo câncer é ter de sofrer, não por você, mas por alguém. Você sofre mais intensamente quando assiste a dor. Queria eu poder capturar aquilo e guardar no meu peito, não no dela, que me embalou quando o desconhecido era tudo que me rodeava. Infelizmente, é fisicamente impossível extinguir a sua chaga e fazê-la continuar em mim. Tomar seu lugar na dor é impossível, e tudo ao meu alcance é esperar, ver pouco a pouco sua dor, suas tristezas, seus medos. Cansa ser um inútil nesse tipo de situação, e a vulnerabilidade desse exato momento, de abalo, logo nas primeiras semanas da descoberta, é o ambiente propício para as primeiras mudas de melancolia se instalarem, e suas raízes são profundas e seus frutos abundantes. É planta que cresce, se expande e morre com a terra.
   Allen, me diga: Por que com minha família? Qual a razão disso tudo? E aqueles que fumam e bebem, saem ilesos? Agora julgo cada fumante que vejo na frente, ou comedor de salsicha, ou apreciador de álcool, ou de maus hábitos alimentares, por estar se autodestruindo. E para quê? Isso não evitou que alcançasse ela, e não evita que aconteça com ninguém, é apenas uma mania da minha indignação e revolta. É passageiro, acho. Não há como evitar o câncer, isso é certo. Quando ele quer aparecer, ele aparece. Ele está dentro de cada um, a um passo de acontecer, uma metástase um pouco mais acelerada e pronto, você foi escolhido. Talvez tudo na vida seja como uma metástase rápida, não dá pra evitar e nem dá para prever, apenas acontece e se faz presente, assim como o câncer: Aparece, como quando nos machucamos, ou caímos, ou mudamos, ou morremos, como eu disse, "acontece". Eu aconteci, minha tristeza aconteceu, minha apatia para com o mundo aconteceu, tudo tão súbito, espontâneo, efêmero. Interessante, gostaria de adicionar a palavra "efêmero" nas minhas palavras, mas o que vivo não parece efêmero, parece eterno.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jul 13, 2019 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Cartas para Allen GinsbergOnde histórias criam vida. Descubra agora