Despertar

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— Oh. Que mortal aterrorizado... É quase triste... — O ser amaldiçoado olhava para a carne corrompida e maldita que formava aquele corpo que lhe havia sido dado quase que como tributo por outras criaturas que não sabiam o que ele era.
Por que ele tinha olhos de novo? Por que ele sentia de novo? Por que sua meditação havia sido interrompida depois de... Pelos seus irmãos deuses... Quanto tempo fazia?
Na galeria inexorável de escuridão quase absoluta senão sua carne pulsando em tons malignos de vermelho e laranja, aquele flagelo de 2 ou 5 milênios, já não sabia mais, se via novamente num mundo material. Novamente sentindo e novamente pensando.
O monstro se ergueu, sentindo seu corpo mais duro e resistente do que qualquer metal se expandir, reconstituir e fortalecer. Suas juntas estalaram; sua carne reforçada tilintou, e aquilo que não era nem vida nem morte se mostrou por completo.
Seu braço direito era sua conexão com esse corpo, e na pouca luz que parecia vir dele mesmo e dos poucos cristais fluorescentes que se formavam nas frestas dos blocos de pedra pelo coágulo de magia, ele viu o fio de sua lâmina reluzir. 

— Vocês não se esqueceram de mim, não é? — Ele olhou por cima do ombro para o resto escuro da grande galeria.
— Não perderam essa tumba para o tempo... Para agora ser encontrada por um qualquer de pouca sorte...
— Não. Eu não me levantei por razão nenhuma, não pode ter sido isso. — Em seu coração, ou... Seja lá o que for que servia como âncora de sua energia e mente, podia sentir algo como um... Como uma maldição da qual não podia se livrar, e da qual se lembrava bem.
— Eu fui... Eu fui desperto para ser o mártir de novo. Para... Para cumprir a minha promessa. — Sua mão, coberta daquela carapaça-armadura pareceu tocar pedra pura quando gentilmente tilintou contra sua face marmórea.  

— Vocês me acordaram. Mandaram um pobre qualquer para carregar um fardo grande demais... Eu te ouço ai dentro menino, e eu sinto muito; pois você verá coisas que mortal nenhum deveria precisar ver.
Balançando o que era seu verdadeiro corpo, o metal frio que continha sua alma e que agora se fundia à carne manchada zuniu e assoviou, cantando como aquelas pedras não ouviam a eternidades.
— Certo. Eles estão por aí. Se eu ainda existo, eles também existem. E esse não deveria ser o caso. Quantos ainda restam? 5? 10? 100? Mais do que conseguiria banir em todas as eternidades que já vivi ou viverei? — Ele suspirou. O ar passando dentro dele e saindo sem ser processado, quase como que as fendas de uma caverna morta. — Pois bem. Meu último dever como... Ascendido. Como... Herdeiro da luz e da glória.
Ele olhou para a própria corrupção. A luz não podia perfurá-lo, a maldição era muito forte; era como se o véu desse mundo se dobrasse para ele. Como se a realidade não lhe desse amparo. Ele chorou, pelo menos em seu coração perdido e esquecido, ele chorou.
— Como aquele que ama demais sua senhora para ver o mundo que ela jurou proteger ser destruído pelas mãos de meus irmãos. Eu cumprirei meu último dever.
A lâmina da alabarda esquentou, o aço soltou fumaça enquanto ardia o ar que a cercava. E como quem marca um boi para mostrar para ele seu destino, ele marcou o mundo para saber que o doutor havia chegado para remover a praga, a todo custo. 

Duskan havia despertado.

Crepúsculo dos AmaldiçoadosWhere stories live. Discover now