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   O sol estava ameno naquela tarde de sexta feira, escondido por entre as nuvens; desejando sorrir aos céus, mas recluso; como quem apenas observa de longe. Fragmentado. Eu ainda estava me perguntando se havia colocado minha toalha de banho na mala, mas era impossível constatar visto que a mala estava em algum lugar no fundo do bagageiro daquele ônibus. Tive sorte pois naquela época do ano, por outubro, chovia forte e a rodoviária estava vazia. Comprei minhas passagens em uma promoção no site da linha transportadora e acabei pagando a metade do preço. Eu não estava realmente excitado, mas soubia que era o correto a se fazer neste momento. Inquietude.

   Sempre fui ensinado que a família é a coisa mais importante de todas, a base de toda estrutura social, é o berço que me acolhe quando minha alma está vazia, é o alicerce de qualquer monumento erigido. É das mãos da família que somos lançados ao mundo, mas não sem antes aprendermos o básico de todas as coisas: como se portar socialmente. Este ensinamento sempre foi reforçado com vigor atravessando e emblema cultural da minha família. Eu diria que tudo o que eu sou é o que a minha família me moldou para ser, afinal com a minha família eu aprendi a andar, com a minha família eu aprendi a falar quando deveria calar-me também quando preciso fosse, foi com mamãe que eu aprendi usar lápis de cores da maneira correta, a pronunciar paralelepípedo, a escrever o nome de vovô da maneira legível, a não chorar em público, a descobrir o que eu queria; ou talvez o que minha família queria pra mim. Com experiências no âmbito familiar que eu aprendi que devo manter as aparências mesmo quando tudo está literalmente uma merda e é pra família que eu devo voltar quando o mundo for rude comigo. As minhas regras, os meus costumes e  dogmas, os meus pecados, meu caráter, as minhas virtudes e a minha cultura, tudo o que de mim se faz é dependente da influência da minha família sobre mim.
Vovó amava Frank Sinatra e foi assim que eu descobri o jazz, hoje em dia eu me perco ouvindo Louis Armstrong e Ella Fitzgerald e apesar de achar o jazz de Frank um tanto entendiante, foi ao ouvir vovó escutar todos os dias das 7 da manhã às 16 da tarde toda a discografia repetida e incansavelmente que eu me interessei  por procurar por jazz no site de buscas da biblioteca da USP e posteriormente encontrar por acaso Billie Holiday que me levou até Rey Charles, que me levou a Bessie Smith que por fim me levou a um álbum em conjunto da Ella e Louis.

   Freud afirmava que família constitui a restauração da ordem antiga devolvendo aos pais o seus antigos direitos. O método de vida social me ensinou que eu devo ter uma família, obrigatoriamente desapegada da diversidade: Uma mãe, um pai, um casal de filhos ou um trio e um animal de estimação, geralmente este será um cachorro, de preferência o que seja da raça que esteja em alta no momento pra que haja a ostentação. Devemos sorrir nas fotografias, superar entre nós os problemas, firmarmos os valores, estarmos agradavelmente felizes em um âmbito de reuniões sociais no final de semana  no Lions Clube ou talvez na associação ou nas datas comemorativas em que toda família deverá se reunir para almoçar em algum restaurante ou resort caro do Rio.

   Sou um ser vivo suportando a ideia de estar na bolha familiar, vivendo todos os dias na Grande São Paulo, esperando no ponto junto a milhares de pessoas a chegada do grande metrô, a fila de desesperados, as formigas perdidas de suas rotas e trilhas, rostos diversos frustrados, cansados, saturados suplicando pelo fim da rota capitalista. Cotidianos. Olhares caídos, semblantes apavorados às 6 da manhã, vagão apertado, abafado e tenso. Troca de olhares, o cheiro de suor, a mãe com a criança no colo, a gota escorrendo pela costa, a mão que indevida assedia, a criança chorando no fim do vagão enquanto esprimida por muito grandes segura a sacola de plástico com algumas verduras pra sua mãe, o idoso em pé, retirante; ninguém se sensibiliza com a sua história estampada nas rugas sofridas sobre a sua pele arcaica, anciã e sábia; o sol nascendo no horizonte da paisagem poluída, mosquitos insistentes perturbando, cães pelas ruas ladrando em fome e horror e as cigarras em choro deprimente nas poucas árvores que ainda restam no centro urbano paulista.

Os Declínios TardiosWhere stories live. Discover now