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O carro estacionou em frente a um pequeno e sutil portão vintage que parecia ter sido lapidado à cobre e esculpido com delicados traços de arte nouveau num complicado sistema de elaborados arabescos, Gustavo desceu e o abriu com o mesmo cuidado excessivo com o qual organizou minhas coisas no porta malas. Agradeci a todos os deuses existentes e aos que estão para ser imaginados neste momento, afinal, o ar puro havia finalmente entrado dentro daquele recinto que me sufocava. Oxigênio. Inspirei tão profundamente que parecia ser aquele o meu último fôlego de vida, mordi sutilmente o lábio inferior em seguida num sinal de agonia; talvez causado pelo sufoco daquela experiência; e em seguida o lubrifiquei com minha própria saliva passando a língua sobre ele. Estava quase aliviado quando ele entrou novamente no carro e nos guiou para os domínios da sua mansão.

   — Seja muito bem vindo, Gabriel. —, ele se virou para trás fitando seus olhos na minha cara pasmada e depois saiu novamente do carro e retirou minhas coisas do porta malas e depois em um ato desesperado de gentileza abriu a porta pra que pudesse sair, como sempre me encarando com aquele ar sofomaníaco pairando pela sua expressão.

   Desci quase que no mesmo segundo. Eu estava ansioso pra me libertar daquela prisão de tensão e já fazia um bom tempo. O ar puro entrou pelas minhas narinas, desceu para o meu pulmão e invadiu o meu sangue que borbulhava efervescendo, quase estourando as minhas veias, provavelmente por causa da adrenalina. Havia uma piscina enorme cobria quase toda a extensão da fachada frontal, o acrílico azulado, o céu azul que refletia na transparente água, o cheiro azul do cloro, pétalas azuis caindo dengosas sobre minha cabeça, tudo era tão azul.

   O rapaz de físico atlético levou minhas coisas para dentro da casa entrando por uma porta de vidro espelhado novamente sinalizando com a cabeça para que eu o seguisse. O ladrilho do chão era um pouco escorregadio e mesmo que meus sapatos tivessem uma fina camada de borracha crua, pra evitar qualquer escorregamento, eu ainda sim me sentia inseguro. A superfície estava respingada por algumas goticulas insignificantes de água. Firmei o meu corpo tomando a cautela necessária a cada passo, sustentei todo o peso do meu corpo num ato desesperado de precaução. Levar um tombo ali poderia me matar ou me deixar muito lesionado com a bacia quebrada. Eu não sei exatamente porque todos estes pensamentos estavam passando pela minha cabeça, mas eu me sentia como se estivesse caminhando por entre um campo minado da primeira guerra mundial. Assim que de maneira sofrêga consegui chegar até a porta levei a minha mão com toda sede possível para me apoiar naquele vidro. Eu não sei exatamente porque, mas me precaver parecia importante, meu cérebro queria isso. Quando a palma da minha mão aquele vidro tocou percebi que se tratava de um material resistente, demasiadamente resistente, diria que à prova de balas. Fui libertado de meus devaneios paranóicos ao ouvir o som duro, limpo e potente do teclar de um piano e pelo o que eu aprendi sobre a ressonância de um piano, aquele som vinha de um modelo de luxo. Um sorriso se fez brotar em meus lábios. Só existia uma pessoa capaz de tocar o piano com tanta leveza e graça como agora eu escutava, minha querida Lisa. Subitamente todas as minhas inseguranças partiram para algum do lugar do submundo em meu subconsciente e me lembrei de quando Lisa e eu frenquentávamos a escola de artes durante o primário. Minha açucarada irmãzinha sempre amou tocar instrumentos, podia facilmente tocar violino, flauta, harpa e piano, mas as vezes também se arriscava no oboé e até mesmo na lira, já eu amava cantar e também pintar. Éramos tão felizes quando estávamos juntos naquele lugar. O sol entrava de maneira tão serena pelas grandes janelas e às vezes eu ficava a observar os belos pés de Ipê que floravam suas maravilhosas flores de todas as cores e quando ela começava a entoar alguma melodia o vento harmonizava soprando por entre os galhos das magníficas árvores fazendo com que as flores iniciassem uma valsa encantadora e deveras romântica e então eu podia ouvir a sinfonia da paz.

   — Quem bom que está aqui! — Ainda com a mão apoiada sobre aquela porta e perdido em meus pensamentos fui surpreendido por um caloroso abraço. Aquele pele macia, um perfume de tão agradável como o gosto do mel e aquele sorriso formidável, poético, lírico. Suspirei de alívio abraçando finalmente minha Lisa. Há tanto tempo não nós abraçávamos. Na verdade, há tanto tempo não fazíamos muitas coisas das quais éramos acostumados a fazer. — Olha só pra você! Está... —, ela pareceu fazer algum esforço pra poder encontrar alguma característica que fosse totalmente cabível... — Animal! —, constatou bagunçando o meu cabelo com a sua mão. Lisa sempre fazia isso, e ela sabia como me incomodava, desde que eu era apenas um moleque. — Seu cabelo cresceu. —, ela dizia com maneira tão suave de ser. Sua voz era tão aveludada como a pelagem da mais intocável camurça. Seu sorriso parecia-se com o sol, mas estava um pouco diferente da última vez que o pude contemplar, mas sempre vai haver dias que o sol irá sair nublado.

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⏰ Last updated: Aug 28, 2019 ⏰

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Os Declínios TardiosWhere stories live. Discover now