Com carinho, Martha

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Minha Querida Lívia,

Semana passada durante um passeio pelas ruas quentes Cairo, lembrei-me, até com certa avidez, da sua sua doce voz. Não me interprete mal, mas tem sido um tempo desde nossa última troca de palavras. Quando pensei ter te ouvido, revirei-me vaga no bonde, como se buscasse, mesmo que em falso, uma clara lembrança da tua cara. Da última vez que tive notícias tuas, Danilo havia acabado de nascer. Soube que tinhas ido aproveitar a maternidade na casa de campo do papai, no Sul. Isso foi em abril de 1989. Fiquei cheia de felicidade, embora quisesse muito pegar o primeiro avião para ver o meu primeiro sobrinho, não podia cancelar a minha tour pelo Leste Europeu. Rezei por ele todas as noites desde então. Rezei também pra que não guardasse mágoas desta minha escolha...

Sinto sua falta. Durante um tempo, aquela temporada que passei em Las Vegas, fazendo shows no Maison, todas as noites antes de dormir, eu ficava pesando em você, pensei tanto que comecei a me esquecer de você agora, e só lembrava de você antes. A sua pequenina cara de menina continua aquecendo meu coração quando as madrugadas são frias e inóspitas como esta. Divago.

Sei que faz muito tempo, e possivelmente este mesmo tempo tenha criado um abismo entre nós. Mas não posso me esquecer da casa de vovô, e das nossas saias se movimentando eufóricas enquanto corríamos despretensiosas pelo quintal e os jardins eram repletos de flores coloridas, das quais os nomes eu não sei, você sempre foi melhor conhecendo a natureza... e a natureza sempre gostou mais de você. Você sempre foi a pessoa mais linda quando estava próxima das flores. E parecia tão ancestralmente sábia quando colhia as ervas pra fazer o chá da tarde. Lembro-me ainda lúcida de como costumávamos brincar sob o sol brilhante, os cabelos ao vento, rindo nuvens até o pôr do sol. Lembro-me das noites claras em que costumávamos dançar no quintal à luz do luar, rindo de nossas tontas travessuras.

Redondamente eu sinto falta dos tempos em que éramos inseparáveis, quando compartilhávamos segredos e sonhos sob o céu estrelado e depois, numa fogueira quentinha, cantavamos juntas. Às vezes, quando estou no palco, olho para a plateia e, por um breve instante, desejo que você estivesse ali comigo, cantando ao meu lado, como fazíamos lá na casa da Vovó. Sua voz sempre ornou perfeitamente com a minha... Claro somos irmãs...

Acabo de fazer um show em Paris, aqui já estamos em 1994. Se você pudesse ter me visto acho que me repudiria até 2024. Provavelmente detestaria meu vestido, as plumas, as cores que escolhi para o esmalte e o batom, o jeito que me movia pelo palco. Não sei como está o Brasil, procuro não ler muito sobre.. Sempre que faço tenho saudades e elas doem... Seria bom se você pudesse me escrever contando, ai então seria como sentir uma saudade justa.

Sabe, minha música tem tocado diversos corações de maneiras que eu nunca poderia imaginar. Eu me sinto livre, Lívia, e é um sentimento que eu gostaria que você pudesse experimentar. Sei que não gosta quando falo assim, mas a sensação de ser aplaudida, se ser aclamada me liberta e me sinto libertina, liberada. Poderia fazer qualquer coisa, até mesmo voar. Sei que me julga por não ter filhos, por não estar casada ou mesmo namorando algum cara... talvez um herdeiro, mas quero que saiba que eu me orgulho muito da sua vida, todavia, não a desejo para mim. Não conseguiria me adaptar... Não conseguiria amar meus filhos como amo a minha música; não conseguiria cuidar do meu lar como cuido da minha voz. Sei que todos esperavam que eu me casasse com o Augusto, mas como uma diáspora e também sou dilúvio, me inundou todas as vezes, ele não aguentaria viver ao meu lado, sentiria-se diminuído. Você sabe como são os homens. E eu sinto muito por ser assim, talvez descompensada demais ou cheia de amor a mim mesma... Mas também estou transbordando de saudades de ti, e isso pra mim é o que tenho de mais valioso.

Lívia, eu nunca quis causar ressentimento em seu coração. Sei que somos diferentes, triangulares. Sei que nossos caminhos nos levaram para lugares distintos, retangulares. Sei que você tem uma vida diferente da minha, que você vive imersa e eu submersa. Sei que você está colhendo frutos de uma boa companhia e união e que por isso pensa que sou sozinha e dolorosa, mas também sei que sente tanta mágoa porque eu pude escolher o meu destino e não deixá-lo moldar-me à vida. Espero que possamos nos reecontrar em breve entardecer, não apenas como irmãs, mas como as amigas que costumávamos ser. Que não sejamos saudade esquecida, folha perdida, promessa partida.

Me escreva de volta. Estou ansiosa para saber como você está e ouvir as notícias de sua vida. Me conte sobre sua família, sobre o André e o Danilo. Sigo rezando pela sua vida e família... E, quem sabe, um dia possamos nos reunir e rir novamente sob o luar e relembrando os dias idos como amor, revivendo os tempos mais simples, menos complicados de nossa adolescência.

Com carinho, Martha.

Os Declínios TardiosDonde viven las historias. Descúbrelo ahora