Capítulo 1 - Bem Vindo, Medo

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4.995 Palavras

      Se a vida tivesse trilha sonora, qual seria sua música?

Eu vivia fazendo essa pergunta para Débora. A resposta dela sempre mudava de acordo com o humor. Eu reclamava que ela era muito inconstante, e ela reclamava que eu era estável demais. Em seguida, entoava os versos de Raul Seixas para reforçar que é melhor ser uma metamorfose ambulante do que viver preso a opiniões medíocres como a de nossos colegas de turma.

Se Débora me visse agora, será que estaria orgulhosa?

Essa é a primeira coisa que penso quando a sola dos meus tênis rosa suja o piso do colégio Santa Brenda Lee. O brilho do chão me cega nos dias mais claros, e hoje, apesar do sol estar castigando, minha visão não vai ser ofuscada, graças aos meus tênis tão novos quanto sujos.

A lama maculando o branco imponente me deixa culpada e ao mesmo tempo satisfeita, porque sei que Irmã Leila vai ficar uma fera quando descobrir, e é tão engraçado quanto assustador. Desde A Decisão, venho experimentando bastante essa sensação embaralhada. A culpa sempre esteve comigo, a novidade é o prazer.

Os fones vibram em meus ouvidos. A escolha das canções foi do papai, por isso não me surpreendo quando uma música dançante mais velha do que um fóssil começa a tocar. Papai gosta de músicas dançantes. Ele é uma pessoa dançante, do tipo que baila com a vassoura enquanto varre a casa. Eu seria uma pessoa incrível se tivesse pelo menos metade do astral dele.

"O mundo é seu, meu filho", ele sempre me diz quando estou triste ou coisa parecida e me abraça tão apertado que é capaz de minhas tripas voarem pela minha boca. Quer dizer, dizia. Nas últimas semanas ele não me disse mais nada, mas ainda me abraçou, e um abraço diz muito.

Mas hoje foi diferente. Assim que me viu com o sutiã que mamãe comprou e a calça jeans nova que aperta um detalhe meu que prefiro esconder, papai chorou. Um choro inesperado para ele e também pra mim. Nada de soluçar sofrido, de lamúrias nem nada. Os olhos dele brilhavam, e não por causa das lágrimas. O mundo era meu de novo.

Todos os narizes se inclinam na minha direção conformo avanço devagar pelo corredor, tentando farejar algum resquício do meu antigo eu. O cabelo, as roupas e até mesmo a forma de andar já não é mais a mesma, mas pra mim o que mudou mesmo é o meu peito. Não esses que balançam quando corremos, ainda não cheguei nessa fase. É o peito de dentro. Aquele que pesava toda vez que tinha que enrolar uma gravata no pescoço pra ir ao casamento de algum amigo da família, ou quando Leandra fazia uma festinha na piscina e eu precisava enfiar uma sunga entre as pernas para poder participar.

Agora, nada mais de sungas ou gravatas apertadas. Sou a rainha da dança, jovem e linda, apenas com dezessete anos, como na música dessa banda sueca de duzentos anos atrás, uma das favoritas do papai. E daí que meu nome na chamada continua sendo "Heitor"? Não me sinto menos rainha da dança por isso.

Mamãe acha chique mitologia grega, então escolheu meu nome como uma homenagem a um grande guerreiro de Tróia. Se ela pesquisasse direito, ia descobrir que Heitor morre no final da história. Morre pelas mãos de Aquiles, do mesmo jeito que o Heitor desse tempo morreu pelas mãos de Bárbara. Talvez mamãe seja uma espécie de vidente, e não apenas uma mulher que não gosta de ler.

Antes que alcance o final do corredor, o sinal da escola rompe o transe dos rostos chocados que não param de apontar para mim. Em questões de segundos os rostos são substituídos por mochilas. De costas para mim, cochicham como se a barreira da mochila pudesse me impedir de escutá-los. Eles estão meio certos. Não posso escutá-los, mas quem protege meus ouvidos é a melodia doce e contagiante compartilhada por papai.

Saio saltitando por aí, expandido a música para fora dos fones, mexendo meus ombros ossudos no ritmo da percussão. Só percebo que estou pagando mico quando, entre um curto silêncio entre o fim da música e o começo de outra, um pequeno baque ecoa pela sala de aula.

Uma caneta marcadora de quadro rola até meus pés. Se não tivesse parado de andar por causa do barulho do choque dela contra o chão, teria tropeçado. Levar um tombo logo no primeiro dia de aula após meses faltando à escola seria sinistro. Estou com sorte hoje.

De pé, em frente ao quadro branco, o professor Cassiano mantém os dedos torcidos no ar, como se ainda segurasse a caneta. Seus olhos naturalmente arregalados saltam ainda mais para fora, extrapolando os limites da física, e a boca abre tanto que é possível um elefante passar por ela.

Ele mexe a boca, com a atenção cravada em mim. Por um instante acredito que vai me pedir para pegar a caneta caída, mas então a boca fecha rápido, trancando a passagem para animais selvagens. Ainda assim, pauso a música, pego a caneta e estendo na direção dele. Ele permanece paralisado.

Franzo a testa por debaixo da franja comprida, penteada com um esmero que há tempos não tinha comigo. Não demorou nadinha para que ela crescesse, graças aos produtos capilares que a cabeleireira da mamãe recomendou. A melhor parte foi que a recomendação veio depois de mamãe confidenciar que a filha dela estava louca para ter cabelo comprido. Fiquei eufórica, mesmo me achando boba por isso. Quando estamos felizes, fazemos um carnaval com coisas triviais.

— Professor — murmuro. —, você está legal?

Minha voz parece despertar o professor Cassiano. Os olhos afundam de volta no crânio até retornarem ao esbugalhado habitual. Ele coça os cabelos crespos rente à cabeça, me lançando um sorriso tão amarelo quanto sua camisa pólo.

— Obrigado. — recupera a caneta e aponta para frente, para onde os outros alunos estão sentados. — Senta lá, que hoje a aula vai ser estupenda!

Ele me dá as costas e volta a copiar no quadro.

Sorrio, fervendo de empolgação. As aulas de filosofia do professor Cassiano são um estouro de champanhe: animadas e barulhentas. É entusiasmo que corre nas veias dele, e não sangue. Ele idolatra Kant como quem idolatra um pai; ama Aristóteles como quem ama um avô; adora e se irrita com Hobbes na mesma proporção, como um irmão. Ouvi-lo contar sobre correntes filosóficas é a mesma coisa que sentar no sofá para ouvir uma fofoca sobre uma visita dos parentes dele durante as festas de fim de ano.

Corro para a minha cadeira, louca para imergir nas reflexões animadas de que tanto gosto, mas estanco no meio do caminho porque um braço envolve a minha cintura.

A pulsação no meu pescoço recém-barbeado acelera perigosamente.

Bem vindo, medo.

Vodca e Água BentaOnde histórias criam vida. Descubra agora