Capítulo 2 _ Shiva

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Mahara

Nasci e cresci na cidade de Varanasi e sempre ouvi falarem que ela é a mais sagrada da Índia, não apenas por todos os muitos templos que tínhamos, mas também pela presença do rio sagrado Ganges, com suas águas capazes de nos purificar por inteiro. Ao redor do rio há muitos gaths, que são escadas que ligam o rio à população. Neles é possível tomar banho, alguns são usados para cremar corpos, outros para lavar roupas e muitas outras coisas. Entretanto, eu segui por um gath em especial que me levou até o templo dourado de Kashi Vishwanath, dedicado ao deus Shiva.

Meu coração palpitou forte quando avistei os seguranças e policiais na porta, tive receio de ser reconhecida, porém, meu disfarce estava perfeito. Eu havia levantado logo cedo e vestido meu sári que ganhei de presente da professora estrangeira. Prendi meu cabelo em um coque, coloquei o véu que combinava com o sári e também as imitações de joias caras. Vi o meu reflexo nas águas do Ganges e estava mesmo irreconhecível, mas, mesmo assim, ainda tinha receio. Se eu fosse pega poluindo o templo com a minha impureza provavelmente seria morta.

Admirei a beleza do templo adornado em ouro e então me aproximei da imagem de Shiva, sentado em posição de lótus.

Fiz uma reverência unindo minhas mãos uma à outra enquanto as lágrimas bobas caíram sem cerimônia do meu rosto. Era um sonho poder orar dentro de um templo como as pessoas normais faziam.

Fiz uma prece em silêncio, pois somente Lord Shiva poderia me ajudar. Ele, o deus da destruição e da reconstrução, possui o poder de transformar sentimentos e situações ruins em boas. Então somente ele poderia acabar de vez com o sistema de castas da sociedade. Embora as leis já exigissem o fim delas, na prática, as coisas ainda permaneciam iguais. Eu tinha medo de morrer como dadi, desejando a liberdade e nunca a alcançando. Eu sabia que ele não poderia me tornar uma mulher de casta, pois nasci dalit e morreria assim, entretanto, já me traria muita paz não ser massacrada apenas por ser quem sou.

— Eu invoco, confio, honro e me curvo à luz do Lord Shiva. — Recitei o mantra oferecendo um incenso para que Lord Vayu, deus dos ventos, elevasse as minhas intenções ao plano superior.

Tomada por uma emoção muito forte, levei a minha mão em direção à imagem para tocá-la. Entretanto, alguém teve o mesmo desejo que eu e sem querer nossas mãos se tocaram. Levei um enorme susto e me encolhi já esperando os gritos de repúdio.

— Perdão! — Ouvi uma voz grave masculina dizer e puxei a ponta do meu véu, cobrindo meus lábios. Ergui o olhar cautelosamente na direção dele.

Era um homem vestido com roupas caras e brancas, no pescoço usava um lenço azul. A beleza dele era de um príncipe guerreiro, os cabelos escuros caíam lisos até os ombros, a pele era moreno jambo. Seu porte era enorme e forte, poderia facilmente me destruir se soubesse quem eu era ali, entretanto, seus olhos negros pareciam bálsamos de tranquilidade me observando, comprovando que eu ainda estava a salvo em meu disfarce.

— Peço perdão também. — Falei baixo.

— Eu sou Karan Devansh! — Se apresentou e eu comprimi os meus lábios, extremamente nervosa.

Eu não podia dizer meu nome, não ali, Are Baba, se eu dissesse alguém poderia me reconhecer e isso seria o meu fim. Engoli em seco e ele franziu as sobrancelhas esperando que eu dissesse algo.

— Lalita Vemula! — Menti afastando o véu do meu rosto e ele sorriu em resposta.

— Lalita... Como a deusa mais bela de todas. — Reconheceu o nome e eu abaixei a cabeça, envergonhada.

Na pressa em mentir esqueci desse detalhe, e acabei me associando à Lalita, a deusa dos três mundos, nascida do fogo do conhecimento para auxiliar os deuses rompendo os obstáculos e mantendo a ordem divina.

— Tik He. — Confirmei mantendo o nome falso.

— Dizem que o sorriso da deusa Lalita é tão belo que Lord Shiva não consegue parar de contemplá-lo. — Ele falou e eu sorri recordando das histórias que dadi me contava sobre os deuses quando eu era criança. — Arrisco em dizer que seu sorriso é semelhante ao dela, tamanho a luz que transmite.

Pisquei sem jeito e voltei a pegar a ponta do meu véu, cobrindo novamente meu rosto. Nunca havia recebido um elogio como esse na vida, por isso não sabia como me comportar.

— Preciso ir.

— Desculpe se estou sendo inconveniente. — Se apressou em dizer e eu apenas assenti.

Olhei novamente na direção da imagem de Lord Shiva e afirmei meus pedidos em pensamento. Depois me virei para o homem ao meu lado que ainda mantinha sua atenção em mim, sorri para ele antes de me afastar. Por mais que eu soubesse que um homem como ele, aparentemente detentor de muitas posses, jamais falaria comigo se soubesse quem eu era de verdade, mesmo assim meu coração ficou em festa. Eu senti que não era invisível e desprezível como fui ensinada desde que me entendo por gente. Ali eu descobri que era alguém mesmo sendo uma dalit.

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