Boitatá

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A noite começou na morte de Deus
E estendeu-se através de alguns anos de veludo

Se vestiu em branco, como uma noiva em chamas
E fez de si enorme serpente, ignus fatuus sob a lama

Um trem perdido em trilhos antigos
No meio d'uma floresta em cujo coração morei

E essa música, uma canção de ninar
Que morou na barra da saia de mamãe

Continuou tocando durante a queda da bruma;
A morte de Deus e
Minha jornada através do mar

Eu nadei até o lugar
Em que ele começa a transbordar para o céu
E o universo é um infinito turbilhão azul

A única luz da noite, triste estrela falsa
É branca e calada e inunda minha casa

Os fantasmas quietos que espreitam da janela
Quando preparamos chá em silêncio na cozinha

Um tênis desamarrado
Na escuridão de quarta feira
E minha mão contra a mão daquele menino
Que gostava da mesma música

Até hoje não sei se gostava dele
Ou se só gosto muito da idéia de ser tola por uns dias

Essas coisas juntas, se misturando
E a umidade carioca—
Ah, o Atlântico me contou que
Ele amou a floresta da tijuca

A noite começou no dia
Em que eu me tornei
Aquela planta que nasceu de algodão
E morreu sob a luz do sol

E continuou, ao som de amores
Por uma década inebriante
Redundante, ultrajante
E absolutamente desnecessária

Eu não aprendi matemática
Mas cresci alguns centímetros
E descobri uma música que me
Canta até que eu durma

Agora eu tenho mais de 1,70
E mais ou menos quarenta e nove quilos
E a noite parece uma amiga antiga
Que nem aquela velha cantiga

"Se essa rua fosse minha
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas de brilhante
Para o meu amor passar"

Aprendi a tocar piano
E esqueci como se toca
E já dancei por entre ruas
Cujo nome esqueci

Ei, eu te mandei uma carta
Em dezembro do ano passado
Não sei se recebeu...

Ouvi dizer que Deus quer matar a noite
Ouvi dizer que ele não vai conseguir
Às vezes não sei
Se quero que consiga.

Réquiem D'um Lírio ImortalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora