Cortes profundos

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Não diga as palavras que
estão em seus lábios
Não olhe para mim desse jeito
Apenas me prometa que irá
se lembrar de nós
Quando o céu estiver cinza

Summer love.
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Em um momento da minha infância, lembro-me vividamente, como se tivesse acontecido há míseros segundos atrás. Em um domingo ensolarado planejávamos almoçar em meio ao jardim que compunha nossa casa. Debaixo de um grande carvalho, que apesar de despejar algumas folhas secas em nossa refeição, nos protegia dos intensos raios solares.

Ao término de nossa afável refeição, como uma família exemplar saída de um desses comerciais de manteiga aos domingos de manhã, nos reunimos para organizar toda a bagunça feita e levar para dentro de nossa mínima cozinha. Em um torpor, senti minhas mãos formigarem pelo peso excessivo da tigela que insisti milhares de vezes para ter por responsável, escorregar por entre os meus dedos sem que eu pudesse sequer ser capaz de salvá-la do impacto que a destroçaria em zilhões de pedacinhos.

Em um piscar de olhos posso me teletransportar para aquele momento, em que um pequeno fragmento de vidro perfurou a minha pele tão profundo e facilmente como se eu fosse feita de um pedaço frágil de papel que pudesse se desfazer em um sopro.

De volta ao presente, neste exato momento, me empenho para decifrar a neutralidade nas feições de Ruggero, no entanto ele permanece impassível.

Processando

Enquanto eu vasculho em minha mente as palavras certas para proferir.

Nada

Exatamente nada parece surtir o efeito desejado

Uma discreta e quase que insignificante parte de mim, a parte esperançosa, acredita que ainda há alguma chance de ele me perdoar, de acreditar que apesar de tudo o que eu fiz, a partir do momento que o conheci nada mais foi igual, e eu faria qualquer coisa por seu perdão. Mas a outra parte, a que quase sempre me domina, a parte racional, grita a plenos pulmões que eu não mereço o seu perdão ou confiança.

Me esforço para normalizar os meus batimentos cardíacos e a minha respiração que esta tão forte que sinto que pode me rasgar o peito a qualquer instante.

Sinto-me como aquela garotinha, apavorada, com receio de dar qualquer passo que possa lhe causar um corte ainda mais profundo.

Em um lampejo de coragem me permito fitar os olhos de ruggero a tempo de vê-lo secar rapidamente uma lágrima sorrateira no canto dos olhos.

- Eu sabia de algumas coisas ao seu respeito, mas você tem ideia do quão absurdo é o que me disse ? você cometeu crimes, não um, mas vários

Se ele soubesse quantas vezes o quis poupar de qualquer dor, não me olharia com o pesar que perpassa seus olhos agora. Tantas vezes fantasiei nossa vida a diante, mas para que fosse possível dar um passo que seja sem olhar para trás, precisávamos desesperadamente desatar todos os nós em nossos caminhos.

Depois de alguns minutos, que se passaram como horas, eu me permito dirigir a palavra a ele

- você esta quieto, pode me perguntar qualquer coisa, eu não tenho a intenção de mentir - proponho após alguns minutos de silêncio

Ruggero solta um riso de escárnio, se levanta e marcha de um lado a outro do quarto, enquanto repuxa os fios de seu cabelo

- Ah agora você não tem a intenção de mentir ? - murmura

- Não - respondo ignorando o sarcasmo em seu tom de voz

- Não sei por onde devo começar, sinto que não conheço a pessoa que está na minha frente, e não sei se quero escutar o que tem para me dizer

Engulo em seco, permitindo que o último mísero fiapo de esperança dentro de mim evapore

Me sinto como aquela pequena garotinha, apavorada, que tem consciência de que um, um único passo em falso sequer, poderá me perfurar profundamente.

- Comece por qualquer coisa - sugiro tentando não sucumbir ao desespero

- Não consigo fazer isso - ele maneja a cabeça de um lado para outro como se pudesse se livrar dos pensamentos inoportunos - por favor vai embora, preciso de um tempo, não consigo olhar para você agora - diz por fim

Me levanto e caminho a passos lentos em direção a porta, me detenho para fitar Rugge, petrificado no mesmo lugar, enquanto faço uma gravação minuciosa de cada detalhe seu.

Desejaria que o seu último olhar para mim não fosse esse que vejo agora

E como se atasse um nó gigantesco em minha garganta, ao fechar a porta, me permito fraquejar e pôr para fora tudo o que implodiu dentro de mim

Alvo Fácil (ruggarol) Onde histórias criam vida. Descubra agora