I. Um Presente De Aniversário de Mnemosine

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I.

Minha mais antiga memória é de quando tinha três anos — quase quatro — e ainda vivíamos naquele chalé perto do penhasco. Uma memória que, no intervalo entre adquirir e compreendê-la, me pareceu um sonho, borrada e excêntrica demais para ser real, etérea demais para ter pertencido a esse mundo. Entretanto, minha mãe me assegurou variadas vezes de que se lembrava daquele dia perfeitamente. Passei muito tempo despida dela — para ser mais precisa, ela só me retornou a mente quando fiz quinze anos. Foi quase como um presente de aniversário de Mnemósine.

Na época, morávamos no apartamento na cidade. Era uma alta cobertura, e meu quarto tinha uma pequena varanda que dava para a avenida. Eu gostava de me sentar com as pernas pra fora, os braços pendurados na grade, e observar o trânsito e as pessoas e as luzes do prédio a frente ligando e desligando a noite. Nunca perdi aquele assombramento infantil por coisa brilhantes; joias e luzes e estrelas prendem meu olhar até hoje. Agora, entendo de onde vem essa reação, mas na época pensava que era apenas uma das muitas cicatrizes e presentes que minha criação opulenta e privilegiada deixou, uma consequência de ter os olhos que minha mãe treinou.

No meu aniversário de quinze anos, data que por muito tempo temi, pouco aconteceu. Era uma terça feira, afinal, e eu tinha uma importante prova no dia seguinte. Português, acho. Então, depois de passar o dia estudando em minha escrivaninha, os sons da cidade escapando através da janela fechada, abafados e longínquos, me levantei da cadeira e me espreguicei, vendo as janelas do prédio a frente se acenderem e apagarem. Eram sete e pouca, e o céu ainda derramava uma frágil luz azul, mas acender as lâmpadas já era necessário. Eu sempre gostei dessa hora, quando o por-do-sol já passou, o fenômeno laranja e vermelho já se extinguiu e tudo que resta é uma cor melancólica e fraca na abóbada celeste, e uma luz delicada, insuficiente. Uma luz que parece transformar o mundo em algo terrivelmente instável, algo que poderia se desmanchar com um sopro. Acho que sempre gostei dessa luz porque ela era bonita e absolutamente desnecessária, e não existia por razão alguma além de existir. Linda luz que não ilumina. A fina arte de ser um ser belo e inútil.

Para falar a verdade, nunca entendi porque o mundo parece tão obcecado com ser útil. Ser algo belo sempre me pareceu muito mais importante (o que soa fútil, mas não é minha culpa; a obsessão com utilidade que transformou o sentido da beleza). Talvez por isso eu tenha me levantado, espreguiçado, e desistido das minhas apostilas e resumos, ainda que não tivesse entendido toda a matéria. E certamente por isso caminhei em silêncio até a porta, a abri, e me sentei na varanda com as pernas para fora e os braços apoiados na grade, meus cabelos longos e escuros se derramando na direção da avenida lá embaixo, assim como meu olhar. Tudo é muito suavemente quieto e brilhante às sete e pouca da noite, assim como às sete e pouca da manhã. Sempre vivi melhor nesses horários.
Observando o brilho dos carros se movendo lá embaixo, presa em um transe quase onírico, a memória surgiu em minha mente. Eu tinha três anos  e estava caminhando por um campo de flores. Minha mãe estava sentada perto da margem do bosque que, junto ao penhasco do lado oposto, delimitava o contorno do campo — uma lua crescente. Ela parecia uma ninfa em meio às árvores, um longo vestido de linho branco se derramando ao seu redor e os cabelos, então escuros como os meus viriam se tornar, trançados com flores. A primavera dançava pelo mundo, e flores de todas as cores e todos os tipos floresciam sob o sol amanteigado da manhã.

Fazíamos muito isso, naquela época, acordar cedo de manhã para visitar as paisagens em volta do chalé e apenas existir lá, em silêncio, flores em nossos cabelos. Os meus, então curtos e finos demais para trançar, estavam decorados por uma coroa de flores de camomila. Minha mãe me descreveu esse cenário algumas vezes durante minha infância, mas um detalhe da minha memória sempre lhe escapou.

Quando cheguei ao meio do campo, uma borboleta branca e amarela passou silenciosamente perto de minha cabeça, mergulhou no ar e pousou em uma margarida. Decidi a copiar, e me deitei em meio às flores. Eu era tão pequena, um ser macio e mínimo vestido em branco, e as altas flores me cercaram como água; não deitei-me entre elas, e sim mergulhei em seu alvo e belo mar. Do fundo das águas, duvidava a existência de algo além de um infinito oceano de margaridas. Não havia penhasco, nem bosque, minha mãe deixara de existir e minha casa não era minha casa. Não conseguia nem ouvir nada, e o único cheiro que sentia era o das flores. O mundo se reduziu, ou talvez, se agigantou, aquele pedaço de terra manchado por branco.

Uma Margarida Colhida Do Fundo De Um LagoWhere stories live. Discover now