III. O Abraço da Flora

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Demorei para chegar até o campo. Não pela jornada ser difícil. Na verdade, era de simplicidade tamanha e propriamente deliciosa — terra negra e perfumada com vida, vestida em echarpes macias de verde denso. Era essa a curiosa qualidade daquela terra: tudo me parecia tão horripilantemente fácil. É assustador, quando o mundo ocupa tanto tempo afirmando o valor da dificuldade, voltar para dentro de si mesma e perceber a virtude do descomplicado.

Andei, pés descalços, e nenhum espinho os feriu. Andei pela escuridão, e esta não guardava nenhuma espada. Só silêncio; um gosto doce de néctar no ar.
A noite era um corpo vaporoso a minha volta enquanto caminhava lenta pela descendente colina. Estava para se esvair e dar lugar a aurora, mas esse era apenas um prospecto pesando na atmosfera, o sereno se tornando leve e uma brisa morna varrendo a grama, rasteira. O céu ainda era um imaculado cobertor de veludo negro e a prata do luar era a única fonte de iluminação dos meus passos.
Uma quietude magnífica me acompanhou por todo o caminho. E nela, me perdi naquela antiga, onírica lembrança. Ela era, afinal, uma das muitas coisas em que me afundei por aqueles dois anos de juventude, um silêncio que pairava, musical, no fundo de minha mente desde meu aniversário de quinze anos. Não, eu diria que pairava desde o dia, anos atrás, em que aconteceu, mas só consegui distinguir esse silêncio de outros quando Mnemosine assim desejou.

Sinto-me incapaz de definir o que eu sabia e não sabia enquanto caminhava; o conhecimento que adquiri depois define tanto minha existência que me parece que o tive desde sempre, embora agora lhe conte justo a história de como ele chegou até mim. Suponho que sempre pairou sobre ela, considerando que ele a definiu, mas foi minha jornada que o teceu em algo com que pude me vestir, palavras e visões tangíveis. Posso porém dizer isto, com certeza: naquela caminhada inicial, eu desconhecia os pormenores de minha origem inteiramente, e, ao me afundar na estranha memória de meu transcender na infância, não compreendia o que ele verdadeiramente significava para mim. Ele me era querido, e importante, mas um gosto esquisito de ignorância pairava sobre meu conhecimento dele.
As árvores eram esparsas, mas a grama se tornou mais verdejante e macia, o felpudo cobertor da terra. Acima de mim, as estrelas pingavam incandescentes, e eu tinha a sensação de que conseguia ver a curvatura da atmosfera. Meu vestido branco refletia inteira a luz da lua, e sua qualidade fluída me dava uma estranha sensação de segurança, como se, se estivesse vestindo qualquer outra coisa, fosse talvez expulsa daquele mundo. Qualquer um que me visse naquele momento se consideraria louco; uma miragem em branco puro, de pés descalços e cabelos tornados selvagens pela umidade noturna. E, novamente, o pensamento era estranhamente confortável, a sensação de não ser uma invasora, ou uma viajante, mas apenas outro pedaço da paisagem, uma pincelada perdida na totalidade da imagem.

Me deparei com o bosque de forma repentina. Estava perdida em um estado de rêverie profundo demais para notar a crescente parede de árvores que se agigantava no horizonte, amedrontadora e convidativa. A noite à beira do bosque era mais escura, imersa em sombras, e as árvores se curvavam para frente, como imponentes porteiros, as sobrancelhas erguidas em questionamento. Senti seus olhos, escondidos entre as copas, me encarando, e devolvi o olhar sem medo ou pudor. Não era meu também aquele bosque?

Assim, mergulhei no abraço da flora, que pareceu soltar um longo suspiro coletivo. As árvores ali eram relativamente esparsas, com troncos esbeltos e copas frondosas de primavera. Através de suas folhas e flores, as estrelas cintilavam, pingando um eco do luar sobre o chão, e o silêncio noturno que aqui se transformava de um véu para um cobertor, transformando o bosque em uma bolha. As cigarras e os pássaros noturnos eram fios de tal cobertor, unindo-se em uma única massa de som-silêncio.
Caminhar pelo bosque presenteou-me com um estranho banho mental; o silêncio era pesado, as árvores belas e o ar pesado com um perfume fresco e adorável. Me foi impossível retornar às minhas quimeras, preocupar-me com o que vinha a frente, ou mesmo montar em minha mente a visão do campo de margaridas. O que pensava, naquele momento, se é que tinha concretos pensamentos, era apenas isto: sou uma menina e caminho no bosque e a noite está particularmente agradável.

De resto, desfazia-me em silêncio.

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⏰ Last updated: Apr 28, 2020 ⏰

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Uma Margarida Colhida Do Fundo De Um LagoWhere stories live. Discover now