Apêndice

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Na edição de O Processo preparada por Max Brod em 1925, além de inúmeras divergências mais ou menos profundas nos capítulos comuns à edição de 1997, figuravam ainda trechos que esta última entendeu afastar. Por isso é em Apêndice que eles são agora apresentados, com a certeza de que o seu contributo valorativo é inegável.

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A noite no teatro

Caía uma chuva fina quando deixaram o teatro. Já cansado pela peça e pela má representação, K. sentiu-se completamente abatido com a ideia de que deveria ainda hospedar o tio. Estava muito interessado, precisamente nesse dia, em falar com F. B.; talvez se apresentasse uma ocasião de encontrá-la, e se o tio ali estivesse seria impossível. Ainda havia um comboio à noite que poderia apanhar, mas decidi-lo a partir nessa mesma noite, quando o processo do sobrinho tanto o preocupava, nem sonhar. Apesar da sua pouca esperança, tentou no entanto:

– Meu tio – disse –, receio realmente ter em breve necessidade da tua ajuda. Não vejo ainda exactamente para quê, mas será seguramente necessário.

– Podes contar comigo – respondeu o tio. – No fundo não cesso de pensar na maneira como poderíamos ajudar-te.

– Continuas a ser sempre o mesmo – disse K. –, mas não queria indispor a minha tia quando te pedir para voltares.

– O teu caso – disse o tio – tem mais importância do que estes pequenos dissabores.

– Não sou da tua opinião – disse K. – Seja como for, não quero afastar-te da minha tia, sem necessidade, e prevejo que precisarei de ti nos próximos dias; entretanto não queres regressar?

– Amanhã?

– Sim, amanhã – disse K. – Ou mesmo agora. No comboio da noite. Seria o mais prático.

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A casa

(...)
Permaneceu muito tempo nesta posição, e desta vez descansou inteiramente. Continuava a reflectir sem dúvida, mas no escuro, e sem que nada o incomodasse. Era em Titorelli que gostava mais de pensar. Titorelli estava sentado numa cadeira; K. conservava-se de joelhos em frente dele, passava-lhe a mão pelos braços e amimava-o de mil maneiras. Titorelli sabia onde K. queria chegar, mas procedia como se o ignorasse, o que atormentava um pouco K. Mas por seu lado K. sabia que no fim de contas obteria tudo o que queria: Titorelli era um carácter ligeiro, um ser fácil de conquistar ao qual faltava o sentido exacto do dever, e era até incrível que a justiça confiasse neste homem. Se a couraça tivesse um defeito em algum sítio, era ali, K. compreendeu-o. Não se deixou enganar pelo riso descarado que Titorelli, de cabeça alta, dirigira para onde não havia ninguém; manteve o pedido e aventurou-se ao ponto de acariciar as faces de Titorelli. Não punha nisso nenhuma paixão excessiva mas antes alguma negligência; tendo a certeza de ganhar, fazia durar o prazer. Como era simples enganar o tribunal! Titorelli, como se tivesse obedecido a uma lei natural, acabou enfim por inclinar-se para K., e fechou lentamente os olhos com uma expressão de amizade para lhe mostrar que estava pronto a aceder ao seu pedido; estendeu-lhe a mão e pegou vigorosamente na que K. pôs na sua. K. levantou-se um pouco emocionado, sentia naturalmente a solenidade do minuto, mas Titorelli já não admitia a solenidade; passando-lhe o braço por detrás das costas, levava-o a toda a velocidade. Num instante chegaram ao tribunal; saltavam os degraus de quatro em quatro, não só trepando mas também descendo, voando de baixo para cima, e de cima para baixo, sem nenhum esforço, leves como um esquife sobre as ondas. E no momento preciso em que K. olhava para os seus pés e chegava à conclusão de que esta bela maneira de se mover não podia já pertencer à baixa existência que ele levara até então, até àquele momento, sobre a sua cabeça inclinada operou-se a metamorfose. A luz que, no instante anterior, chegava ainda de trás, alterou-se e de súbito chegou pela frente: uma catarata resplandecente de luz. K. levantou os olhos, Titorelli dirigiu-lhe um sinal com a cabeça e fê-lo rodar nos calcanhares. K. achou-se no corredor do tribunal, mas tudo estava ali mais tranquilo e mais simples. Nenhum pormenor singular impressionava já os olhos; abraçou tudo com um olhar, soltou-se de Titorelli e seguiu o seu caminho. Levava nesse dia um fato novo comprido de cor escura, voluptuosamente leve e quente. Sabia o que lhe tinha acontecido, mas sentia-se tão feliz que não queria confessá-lo ainda. Num canto do corredor, onde grandes janelas estavam abertas de um lado, encontrou num montão os seus antigos fatos, a jaqueta preta, as calças às riscas de cerimónia, e por cima, estendida, a sua camisa de mangas largas.

O Processo (1925)Donde viven las historias. Descúbrelo ahora