O Lírio e o Carneiro - Prelúdio de Aspectos | COMPLETO NA AMAZON E LOJA UICLAP

I

TUDO ERA MEU para devorar e eu era o único pre­dador insaciável.

O vermelho invadiu minha mente outra vez.

Tudo era fome. Tudo era sangue.

Não havia escolha, pois eu terminava o que a filha do sol começava.

Em meio a loucura, estraçalhei, destruí, bebi e me empan­turrei.

Então, minha maldita fome foi apaziguada, mas somente por enquanto.

Ela olhou para mim e recuou.

Vi o horror em seu rosto, mas percebi que em seu semblante também havia compaixão, tristeza e pena — principalmente a pena.

Eu a amava por sua gentileza, por sua beleza e integridade; a amava de todo o meu coração negro, porém sabia que não podia, que não deveria.

Se eu continuasse a amar o doce Lírio, um dia, iria devorá-la também.

Ah, minha amada flor, linda filha do sol, perdoe-me por ferir as coisas que lhe são queridas, perdoe-me por trazer o fi­nal daquilo que te inspira a alegria.

— Perdoe-me por existir — sussurrei.

Senti lágrimas descendo por minha face, grossas gotas pre­tas que deixavam rastros negros ao que escorriam pelas boche­chas e maxilar, pingando em meu peito.

Virei-me e disparei como um relâmpago; corri até que mi­nhas pernas adormecessem de cansaço. Enfiei-me na primeira caverna que encontrei e penetrei a escuridão como um bicho atormentado, prometendo a mim mesmo que nunca mais sairia dali.

Mas, cedo ou tarde, eu teria que sair.

Quando meu coração negro estivesse prestes a acreditar que a loucura terminou, quando a fúria retornasse dos confins de meu ser perturbado e me incendiasse por dentro, mi­nhas garras e meus dentes clamariam pelo horror que somente aquela fome era capaz de trazer.

Enquanto o Carneiro pisoteasse os lírios, o pesadelo não te­ria fim.

Enquanto eu vivesse, ela jamais poderia ser verdadeira­mente feliz.

— Perdoe-me... perdoe-me...