II

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TENTEI QUEBRAR OS meus chifres.

Batendo a cabeça contra as rochas úmidas, não enxergando mais do que um palmo à frente do nariz, fiz o que estava ao meu alcance para me manter são, procurando distrair a mente com a dor e a tontura causadas pelas fortes pancadas.

Mas, para a minha angústia, eu era como os verdadeiros carneiros: resistente demais.

— Quebrem!... — gritei entredentes.

Tomei distância. Corri e cabeceei a rocha outra vez.

Senti tudo estremecer; chão e paredes balançando e soltando pedregulhos que quicaram ruidosamente. Desisti. Caí de joelhos.

— Quebrem... — sussurrei, em vão. — Por favor...

O que era um Carneiro sem os seus chifres, afinal?

Se eu conseguisse parti-los...

Ah, mas ainda me restariam as garras e os dentes, poderosos e pontiagudos como os de um animal assassino que só ataca por trás, sempre mirando no pescoço de sua vítima.

Ao menos, a fome ainda era pouca.

Desejei que permanecesse assim.

Eu não sabia quanto tempo fazia desde que fizera daquele buraco o meu mais novo cárcere — dias, semanas, meses ou anos. Se bem que, na verdade, nem importava tanto, pois a sensação que tive foi de que havia se passado uma eternidade inteira.

Se eu saísse agora, o mundo ainda seria o mesmo ou estaria diferente?

Suspirei. Sentia-me exausto.

Devagar, levantei do chão pedregoso e molhado.

Incapaz de transformar a dor em distração, me restou procurar consolo em um sono profundo.

Cansado como estava, talvez até conseguisse algum resultado relevante, mesmo que durasse pouco.

Meus cascos se arrastaram lentamente por sobre o solo. O barulho ecoou por todos os lados, sufocando o ruído das tímidas gotas d'água que pingavam das estalactites acima de minha cabeça.

Adentrei a caverna ainda mais, até encontrar o final dela, onde nem mesmo os morcegos se atreviam a ir. Aninhei-me sobre uma superfície lisa e seca, ignorando a poeira e as teias de aranha que grudaram em meus chifres e nos cabelos negros.

Fechei os olhos.

Pensei nela, no doce Lírio.

A imagem brilhante de seu delicado ser embalou-me até que não houvesse nada além do sonho que só vinha até mim quando eu me concentrava na imagem estonteante da filha do sol — um sonho tranquilo e igualmente estranho onde asas brancas brotavam de minhas costas e me levavam até o ponto mais alto do céu.

Ela estava lá comigo, em meus braços.

Eu tentava chamá-la, mas ela não respondia.

Era sempre nesse momento que eu acordava.

Era sempre nesse momento que eu acordava

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Ouvi uma canção.

Aquela voz era inconfundível. Como me encontrou?

Às vezes, esquecia-me que não podia fugir dela. Por mais que eu tentasse, não iria acontecer. Éramos destinados a nos encontrar nos momentos mais inesperados, nas horas mais sombrias. Isso incluía as casualidades também.

Sempre ligados e eternamente separados, nós caminhávamos na direção um do outro o tempo todo.

Por mais que eu me esforçasse e seguisse pelas estradas que me levavam para bem longe dela, a fim de deixá-la completamente livre do infortúnio que eu causava, o doce Lírio sempre encontraria o cruel Carneiro.

Eu temia que, um dia, ela fosse pisoteada.

O interior da caverna se iluminou repentinamente. Foi como se o próprio sol tivesse descido dos céus apenas para vir me aquecer.

Senti sua mão em meu rosto, acarinhando-me sutilmente, como de costume. Não recusei o contato — sequer era capaz disso —, mas não a encarei.

— O que conta a sua canção de hoje? — perguntei.

— Descubra por si mesmo. — a filha do sol respondeu solenemente. — Mas ela é para você, acima de tudo. Todas as minhas canções são suas, afinal.

— Agradecer é tudo o que posso fazer, pois não tenho voz para cantar e nem sei como criar melodias tão bonitas quanto as suas — sussurrei.

— Saberia se deixasse que eu o ensinasse.

— Você e suas tentativas de ficar por perto...

— Se não estivesse sempre fugindo de mim, eu não precisaria procurá-lo e não teria que encontrar maneiras de convencê-lo a permitir que eu te faça companhia, mesmo que seja por pouco tempo.

Quando finalmente juntei a coragem necessária para abrir meus olhos e contemplá-la, vi-a sentada ao meu lado, na beirada de minha cama improvisada com rocha dura e fria.

Ela vestia nada mais que um tecido de seda branca enrolado no corpo, cobrindo somente o que deveria estar oculto.

Seu sorriso aqueceu meu coração, mas também fê-lo latejar dolorosamente.

Era linda tal qual uma poesia tornada realidade, perfumada como mil lírios brancos, e suas feições eram a união perfeita de tudo o que havia de mais belo no nosso mundo cinzento.

O doce Lírio ainda acariciava minha face. Percebi que minha barba estava mais grossa, talvez até mais comprida.

Ela não tinha medo de mim, mas eu nunca me atrevia a tocá-la com essas minhas mãos maculadas.

— Conhece os riscos — me encolhi ante o seu carinho e desfitei-a logo em seguida.

O Lírio levantou minha cabeça delicadamente e deitou-a sobre suas pernas, fornecendo-me um apoio muito mais confortável do que a pedra gelada onde eu estava; meu rosto voltado para seu ventre exposto.

Novamente, não a recusei.

— Eu os aceito — sussurrou a filha do sol.

— Mas eu não — respondi.

Ela se inclinou e beijou-me os lábios, e a escuridão em meu coração se extinguiu por um brevíssimo momento.

Nos tornamos um só, atados por nossas bocas.

Me afastei.

Sempre ligados e eternamente separados, nós caminhávamos na direção um do outro o tempo todo, mas eu faria o que estivesse ao meu alcance para deixá-la em paz.

Sempre ligados e eternamente separados, nós caminhávamos na direção um do outro o tempo todo, mas eu faria o que estivesse ao meu alcance para deixá-la em paz

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