... colhe tempestades

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Hoje é o segundo sábado do mês. Garrett Pike sabe que assim que se levantar do sofá para ir buscar o correio antes de jantar irá encontrar quatro cartas: a conta da água, a conta da luz, a conta do gás e uma devolvida ao remetente.

No entanto, hoje é um sábado atípico. O programa que costuma assistir durante a tarde foi cancelado e deixou de passar na TV; Andrew, o rapaz dos correios, passou duas horas antes do habitual e, por fim, a caixa do correio não tinha quatro envelopes. Tinha cinco.

Garrett não reconheceu aquela letra, mas tinha esperança de que fosse a correspondência porque ele tanto ansiava. Com pressa, retornou a casa e abriu o envelope com o maior dos cuidados. Sentado na cadeira da cozinha, com o jantar por fazer e as outras quatro cartas espalhadas na mesa, ele retirou com todo o cuidado do envelope esbranquiçado três folhas de papel, manchadas com infinitas linhas de letra miudinha.

Com os óculos da hipermetropia na ponta do nariz, o homem começou a ler num sussurro as palavras que lhe tinham sido escritas.

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Garrett Pike,

Escrevo o teu nome para ter a certeza de que, mesmo que o envelope se extravie, alguém o faça chegar até ti. Para que possamos enterrar este assunto de uma vez por todas.

Eu vi as outras trezentas cartas que me mandaste antes desta. Pensei que depois deste tempo todo tivesses percebido que eu não quero ter nada que ver contigo. Não me interessa o quão arrependido possas estar ou se esta inútil tentativa de contacto faz parte de um daqueles planos de doze passos para a redenção. No que depender de mim, não terás perdão.

Era suposto teres sido meu pai. E, sejamos honestos, foste. Mas por um período de tempo demasiado curto. Foste meu pai enquanto te apeteceu. No fundo, não passas de um velho bêbado e depravado que não tem onde cair morto.

Sempre que me perguntam pelo meu pai biológico ou sempre que tenho de preencher documentos oficiais, o meu primeiro instinto é dizer que morreste.

Como eu gostava que fosse verdade.

Assim não tinha de explicar que és um alcoólico toxicodependente com problemas de raiva que, por algum milagre, não teve uma sentença suficientemente grande e justa. Não tinha de explicar porque razão é que eu e a mãe tivemos de sair de uma casa que, segundo a ordem natural das coisas, seria minha por direito e que neste momento deve estar atafulhada de lixo e completamente imunda. 

Tampouco teria de aguentar ser cuspida pelo meu cérebro durante infindáveis segundos de volta à minha infância, às memórias gravadas a fogo na minha cabeça. Porque aquelas que realmente queremos esquecer são as que nunca vão embora.

Durante algum tempo depois de eu e a mãe nos fazermos à estrada, pensei ingenuamente que seriam memórias que precisaria de lembrar e estimar para sempre.

Graças a Deus que foi só por um par de horas.

Comecei a ver-te por aquilo que és assim que eu e a mãe parámos naquele restaurante de fast food e ela me contou o que aconteceu durante anos nessa casa onde ainda hoje tens a lata de morar  Deus queira que o teto te caia em cima e que morras enterrado nas imundices que essa tua doençazinha te "obriga" a trazer para casa. 

Todas as minhas memórias favoritas desfizeram-se em pedaços com aquela confissão. Mas em retrospectiva, aquilo foi um bem necessitado balde de água fria.

Se não fosse aquela conversa nunca teria desconfiado que a razão pela qual a mãe não foi connosco andar no carrossel da feira quando eu tinha 4 anos foi porque tu a trancaste no sótão depois de ela ter dito que não queria a casa cheia da tua tralha e que tu precisavas de ajuda médica. 

A única carta que alguma vez lerás (⚢)✔Wo Geschichten leben. Entdecke jetzt