A solução final

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  Raimundo dos Santos , Nonato tinha 39 anos . Era motorista de ônibus , negro , cansado daquela vida tediosa , do sol quente – de 40 graus que entra pela janela e queima sua pele – das contantes dor de cabeça , que lhe forçava a engolir os dorflex com a garrafa de água . O mesmo tremor do ônibus – aquela merda de ônibus – que ficava sacolejando de um lado pra outro como se fosse cair pra um lado , sempre lotado de tanta gente irritada , violenta , cansada , arrependida , burra , religiosa , esperançosa , deprimida , suicida , infeliz , feliz , suicida , deprimida ou quase virando deprimida , chorando ou não chorando .

Quando chovia , era pior . A água entrava pelas portas , pela janela e molhava todo o povo lá dentro e começavam a reclamar , geravam brigas . Gritos , gritos e mais gritos . Raimundo focava na estrada e se esquecia do resto do povo , olhava com um olhar firme e apertava com tanta força como se aquele volante fosse se quebrar sobre as suas mãos de ódio , pisava fundo no acelerador , ele corre pela rua . Passa carros , kombis , bicicletas , crianças , homens , mulheres , negros , brancas , pardas , empregados , patrões , madames , senhores , crianças de colégio , meninos de colégio de elite , meninas de colégio público . O sinal para . Pessoas de baldes , cadeiras de praia , toalhas , rindo , sorrindo passam pela faixa , atravessam a rua em grupos , fugindo da porra da chuva . Por que riem tanto ? Não tem nada pra rir , só chorar . Sendo um macho , segurou a porra do choro . Segurou na garganta , não veio o choro . Segurou bem fundo .

O sinal abre .

Pisou fundo , como em uma corrida , ele passa pela estrada deslizante . Ao longo das janelas , se reflete o aterro do flamengo , o mar , os belos prédios do Flamengo , a Cinelândia .. ele para . O pessoal grita , descendo e reclamando que ela para ter parado antes . Ele ignora as reclamações .. nada mais faz sentido . Era a última viagem , os últimos passageiros .. ele toma mais uma garrafa de água , mais um remédio . A cabeça explode debaixo daquele uniforme quente . Batem nas portas da frente . Batem e gritam para entrarem por trás . Não tem dinheiro pra pagar a passagem . Depois , ele que tem que pagar com o seu próprio dinheiro . Vai se fuder , ele grita com raiva . A voz ressoa grossa como a de um leão , forte . Os moleques , desistem não entram pelas portas .

Um impulso de destruição enrome cresce do seu estômago e cresce , de revolta , de não aguentar mais essa pressão , essa opressão , desse sofrimento diário do povo brasileiro . Sim , o povo pobre que todo dia anda de trem , de ônibus lotado e cheio , enjeulado e jogado como gado dentro de um abate , imprensado um contra o outro . As faces em angústia , tristeza , vexame , vontade de morrer , de muita coisa que queria muito fazer , mas não pode . O ônibus segue , naquele mesmo movimento lerdo , pra esquerda e direita e direita novamente ..

É a última vez . Raimundo nem vê mais nada , só no automático , piloto automático que segue a estrada no mesmo movimento de repetição que aprendeu durante tantos anos que nem se liga mais , nem pensa mais . Só pisa no acelerador , no freio e segue em frente . – Nossa , como ele tá rápidoooooooo

Tão rápido que chega logo ao seu ponto final , desce do ônibus e sai correndo para um banheiro de uma lanchoente , atropelando tudos . Abre a privada , enfia o dedo na garganta e libera tudo o que tem lá dentro .

Mas ainda não é o bastante .

Olha seu rosto no espelho . Os olhos inchados , roxos , sofridos , a face marcada de manchas de sol , de espinhas , protuberâncias pelo corpo inteiro , cobrem todo o seu corpo . Já está todo destruido .

Mata , mata , mata grita uma voz na sua cabeça , uma voz de quando era moço , tinha esperanças , agora não tem mais . É apenas uma sombra nesse teu voar , um fantasma que caminha sobre as planicies e levanta vôoo para a morte . Seu coração não bate mais , suas pernas tremem , sente uma vertigem .

Relincha e ri que nem um louco pro espelho . O crachá e o uniforme de motorista de ônibus sujos de vômito e sangue transgridem da sua blusa e infecta o seu cheiro , a sua pele e ele ama isso . Quer ser repuslivo , quer que todos lhe se afastem de si , quer desaparecer eternamente da existência , é hoje , a existência final .

Sem ouvir o que os outros falam , corre pela lanchonete , vira na esquina , passa pela banca de jornal , farmácia , mercado , salão , farmácia , salão , farmácia , Igreja , Igreja , salão , drogarias .. entra na esquerda e sobe até o seu apê e desaba sobre o chão . Está com imundação , o teto caido na porra do chão , a tv quebrada . Ele bate sobre o chão , bate , bate . o chão treme . Na cozinha contigua a porta , vem um choro ensurdecedor . Um choro alto , um berro de uma criança faminta de leite que a mãe abandonou , no meio da cadeirinha . – Fui embora , ela disse e foi mesmo .

Ele vai ao quarto . Pega um revólver ... eu quero ver , eu quero , eu quero ver se ela tem coragem , essa filha da puta .. as balas caem no chão . Ele coloca de novo . Na rua , toca funk . O batidão forte , invasivo , invasor , destruidor , enloquecedor enche a sala como um odor terrivel e de que infeltra todos os sentidos .

NÂO DÁ MAIS , pensa .

Ele vai a cozinha e dá um tiro certeiro na testa da menina . Instântaneo . Ela para de chorar na hora , foi imediato . O sangue e os miolos se espalham na parede . Ele para , alheio ao funk e a tudo , a boca imóvel da garota , supresa e os olhos arregalados de tanto chorar . Mas nada disso importa , você não vai ter que enfrentar tudo o que eu passei .

Batidas dos vizinhos querendo saber o que tá acontecendo , cada vez mais aumentam . A policia quer arrombar a porta , vão quebrar a porra da porta e vão me prender .

A solução final é essa .

Ele pega a menina morta rapidamente e a taca pela janela . Ela já estava morta , então ele só corre , dá um tiro em si mesmo . A chuva cai em torrrões , caem árvores , calçadas , carros são levados .. como sempre foi e sempre vai ser assim

... Abre os braços e do 13 andar do Piedade , se taca da janela em um eximio ato da maior liberdade humana .

Antes que os outros entraassem no apartamento , ele já estava morto e estirado no chão , estatelado sobre uma poça de sangue .  

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⏰ Last updated: Mar 30, 2020 ⏰

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SOLUÇÃO FINAL - LIVROS DE SANGUE -PARTE 1Where stories live. Discover now