🔸 ⚙️I - A C I D A D E⚙️ 🔸

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            O sol mostrava seus primeiros raios pouco mais das sete horas, cruzando o vidro da janela do trem e recaindo sobre as pálpebras de Victoria Badeaux. Ela lutou com a luz para não precisar abrir os olhos, mas foi em vão. A noite não havia sido uma das melhores, seu pescoço doía pela posição que adormecera e seus sonhos vagavam entre o circo e o medo do que aconteceria quando o trem parasse. Um dos sonhos, aquele no qual ela se via em um cavalo correndo na neve, era a última memória que tinha da Inglaterra.

            Os outros membros da trupe já conversavam, e o silêncio do vagão começava a ser corrompido por cochichos. Ao lado de Victoria, quem despertava era Madeleine Leroy. A trapezista não demonstrava ter tido uma má noite, era como se houvesse adormecido em uma cama de plumas. Victoria sorriu para a melhor amiga que retribuiu com um sussurro de "bom dia". No banco da frente, Mathieu dormia pesadamente em uma posição que lhe renderia muita dor no pescoço – ou talvez não, ele já estava acostumado a dormir em locais muito piores que um trem. Um jornal cobria seu rosto em uma página qualquer, Victoria tinha a certeza de que ele não lera – não porque não quisesse, mas porque não sabia. Foi necessário que Madeleine usasse a ponta da sua sombrinha, que havia estado repousando em seu colo, para cutucá-lo até acordar. Mathieu resmungou enquanto tomava a noção de onde estava.

            O trem já se aproximava da estação King's Cross, e Victoria nem havia percebido o tempo passar. Ela encarou a estação através da janela, embaçada pela fumaça, enquanto um misto de saudosismo e aflição tomava conta de sua mente. A locomotiva e seus vagões davam seus últimos sinais de funcionamento antes da máquina parar, mas ainda sim não fora suficiente para tirar a menina do transe. Embora Victoria estivesse olhando para a plataforma, seus olhos não enxergavam o que estava a sua frente, na verdade as únicas imagens reproduzidas eram de algum momento entre setembro e dezembro de 1888.

          Pela primeira vez nos últimos cinco anos Victoria colocaria seus pés em solo londrino. As memórias pareciam querer engolir a garota, e ela se viu pedindo aos céus para que a passagem do circo pela capital inglesa não durasse tanto. Ainda que houvesse os sentimentos ruins que Londres trazia, Victoria não deixava para trás quem ela era de verdade. Annelise Smith Chapman, a filha de um relojoeiro e uma prostituta, Victoria Badeaux era seu alter ego, a órfã que encontrou um lugar em um circo francês no qual podia viver sem ser perseguida pelo passado. Quem conhecia Annelise nunca diria que ela e Victoria seriam as mesmas pessoas.

           A moça deu um suspiro cansado, como se as imagens fossem se esvair dos seus pensamentos junto com a fumaça que já se dissipava lá fora, levantou-se e se esticou para pegar a pequena maleta com seus poucos objetos no compartimento acima do assento. Madeleine e Mathieu foram os primeiros a sair.

           A trupe seguia para fora do trem em polvorosa, como se fosse um passo para outro mundo. Victoria tinha a sensação de estar sendo arrastada em direção a saída pelos outros pois suas pernas pareciam não querer andar. Pensou em voltar para o último assento do trem e esperar que ele partisse novamente para qualquer destino que fosse, mas não o fez porque uma parte dentro dela ainda queria levá-la para o lugar onde cresceu. Ela hesitou por um momento ao chegar na porta, parando, e sentiu seu corpo ser lançado para frente quando alguém esbarrou em suas costas.

            — Cuidado – disse uma voz masculina.

            Victoria sentiu a sua cintura ser envolta por uma mão que a puxou para trás, fazendo-a chocar seu corpo contra alguém um pouco mais alto do que ela. A garota levantou o rosto e encarou os olhos cor de mel quase escondidos pelos cachos castanhos de Pierre Leroy. O rapaz endireitou os óculos de piloto em sua cartola e sorriu, mas não de uma maneira simpática. Na verdade, era um daqueles sorrisos que se dá quando uma pessoa sabe que tem o controle da situação.

Amores Mecânicos [HIATUS]Where stories live. Discover now