DIA DOS MORTOS.

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Desde que eu era criança, sempre me disseram que eu era uma pessoa sensitiva. Com o tempo me deixei consumir pelo ceticismo. No fundo eu sempre sabia quando algo ruim iria acontecer, parece prepotente mas o meu corpo sempre me passou impressões sensoriais. Pra uns isso é um dom ou uma dadiva. Pra mim, um pesadelo. Nunca segui os meus sentidos, paguei com a moeda mais cara, levaram tudo de mim: a confiança, a liberdade, a privacidade, a sanidade e a vontade de estar viva. Na véspera do dia dos mortos, foi o dia em que senti que uma parte de mim havia morrido. 

Maio de 2017, foi a primeira vez em que vi ele. Ele usava uma calça preta, blusa vermelha, era o tipo de pessoa exibida e gabava muito de si, lembro da sensação ruim que pairava sobre ele. Uma amiga em comum nos apresentou e ele falou coisas com um tom que me parecia querer impressionar. Duas semanas depois, em Junho, ele disse pra essa amiga que gostava de mim, e detalhe, nunca tínhamos tido conversas profundas, estudávamos em salas diferentes e nem intervalo tínhamos, só nós falávamos no início e no fim das aulas. Não me recordo da minha primeira conversa com ele. Eu lembro dela me contar sobre a possível paixão dele em um domingo de sol num festival em que provavelmente ele estaria lá, a cidade inteira estava, eu ria e soltei um claro e sonoro:

- "Ele nem me conhece. Como ele pode gostar de mim?" 


E ela me respondeu:  "Dá uma chance, vocês seriam fofos juntos!"


Aquilo ficou na minha cabeça. Fiquei impressionada, era uma situação tão irreal pra mim, sempre fui a menina que era ponte para os garotos chegarem em outras garotas. Eu nunca fui escolhida de fato. E quando achei que fui, me decepcionei, logo no meu primeiro relacionamento. Depois do primeiro, eu ficava desconfiada de tudo. Uns me disseram que eu era insensível demais e eu chamava isso de autoproteção, passei anos sendo rejeitada e trocada, como eu iria acreditar que alguém que acabará de me conhecer, gostava de mim? era algo totalmente fora de cogitação. Nesse dia eu fiquei tão bêbada, mas me lembro de ter encontrado ele no meio da multidão, não lembro o que eu falei pra ele mas daquele dia em diante a nossa relação não era mais a mesma.Depois disso nós no aproximamos, eu disse pra ele que eu não o via de forma romântica e lembro perfeitamente dele me dizer que tudo bem pra ele ter a minha amizade. Eu estava em um momento muito conturbado, tinha acabado de terminar com alguém que eu gostava muito, me afastei dos meus amigos, estava super focada nos estudos e me sentindo completamente só. Eu tinha uma rotina doentia. Mas quando eu chegava na aula de noite, lá estava ele. Ele virou meu amigo, meu confidente, alguém que eu sentia o minimo de paz no meio do caos, que me fazia rir e me compreendia ou pelo menos tentava.


 Nós dois ficamos ainda mais próximos, quando a aula era chata demais e nos estávamos cansados para prestar atenção, bastava um olhar pra gente levantar das nossas cadeiras da forma mais cara de pau, no mesmo horário, todos os dias pra matar aula na cantina que já havia fechado, passávamos o resto do horário de aula conversando, falando sobre a vida, as vezes ele falava do mesmo jeito em que falou quando nos conhecemos, eu sempre ria e dizia o quanto ele era um péssimo mentiroso. Eu sempre sacava das mentiras dele. Ou pelo menos eu achava isso. Com o tempo percebi que ele era um ótimo manipulador.


A primeira vez que beijei ele foi um momento muito estranho. Foi completamente impulsivo. Eu confiava nele, ele era meu refúgio, tinha acabado de chorar um rio de lágrimas olhei e pensei: Por que não? Desde que beijei ele acendi uma faísca de esperança para aquele menino que eu conheci no primeiro dia de aula. Logo depois a gente tentou fazer com que as coisas não ficassem estranhas, eu ainda amava outra pessoa, mas os dias foram passando e ele foi mostrando que no fim das contas, nunca tinha esquecido do sentimento, ele se declarou e eu lembro dele me dizer:- "Tu sabe como deixar marca nas pessoas."


Hoje essa frase ecoa na minha mente por que ele certamente deixou uma marca bem maior em mim. Em outubro, eu descobri que ele falava de mim para os outros de forma debochada, que eu era louca por ele e tinha agarrado ele, que eu era apaixonada por ele. Eu não o via dessa forma. E eu sei que acabei dando expectativas demais mas não esperava esse comportamento dele, pelo menos não comigo. Eu amei e depositei nele uma confiança enorme. Eu fiquei magoada, brigamos e eu tinha acabado de perder meu melhor amigo. Fiquei me sentindo culpada por semanas, na semana antes da prova pra qual nos preparamos o ano inteiro, resolvi que iria me resolver com ele, eu queria ter meu amigo de volta, eu queria entender porquê ele tinha feito o que fez.

Em novembro, fomos pra uma festa na véspera de finados, tava tudo dando errado, quase não consegui chegar ao local por diversos motivos, tinha perdido dinheiro, tava completamente atordoada e nervosa. Foi um dia um ruim e não via como seria possível ele ficar pior. Paguei com a língua. Consegui chegar, bebi tudo o que consegui beber, queria me lavar e esquecer tudo o que estava acontecendo, tudo o que me atormentava. Mandei mensagem pra ele. Eu sabia que ele estaria lá. Queria resolver tudo. Ele me respondeu e nós encontramos. Não lembro o que ocorreu. A memória que me recordo é de estar deitada na grama e pedindo para ele parar. Meu braços doíam por ele estar segurando com força. Eu disse que não queria. Ele se desesperou.  Eu tinha me perdido dos meus amigos, ouvi a voz de um deles no estacionamento, ele me deixou, saiu correndo. Comecei a chorar como nunca havia chorado antes, não conseguia falar o que havia acontecido, só que era algo muito ruim, que eu poderia matar ele, que era imperdoável, que eu odiava ele mais que tudo nessa vida. O meu amigo desesperado esbravejava:

- O QUE ELE FEZ? O QUE ACONTECEU?


Coberta de lágrimas, com a voz embargada, eu disse: "Ele abusou de mim."

VOLTANDO PRA MIMWhere stories live. Discover now