Alguns dias depois,envergando seu uniforme branco,Morelli entrou na sala de cirurgia. Ante os preparativos para o socorro urgente a um acidentado,não se pôde furtar a um gesto de compaixão diante do jovem,pálido,estendido na mesa cirúrgica. Fora solicitado para auxiliar Dagoberto e opinar. Aproximou-se. Dagoberto já se encontrava auscultando o paciente cuidadosamente ,enquanto os outros dois preparavam o campo. - O que foi? - indagou Morelli ao amigo. - Um tiro. A bala alojou-se no pulmão. Veja a radiografia. - Está mal. - Perdeu muito sangue. - Foi briga. - Não sei ainda. Acha que suportará? Morelli aproximou-se levantando a pálpebra do moço e olhando seu olho. - É uma pena. Tão jovem. Terá dezoito? - Acho que menos. - E a família? - O pai está aí fora. É só o que sei. Vou iniciar. Olhe onde a bala se alojou... - Hum! - O que acha? - Rezar nessa hora seria bom! - Não brinque. Morelli pensou em Juliana. Ele não estava brincando! Ela dera-lhe a impressão clara de que seus seres em outra dimensão da vida podiam socorrer os mortais. Seria ilusão? Enquanto Dagoberto iniciava cuidadosamente a cirurgia,ele rememorava os acontecimentos de alguns dias antes.A melhora de Rosa fora espetacular. Tivera alta vinte quatro horas depois. Olhou o corpo jovem estendido,imberbe, comoveu-se. " Estou ficando mole", pensou. Um médico como ele, habituado durante tantos anos a presenciar os dramas do cotidiano,não podia impressionar-se . Pensou no filho e a emoção voltou. Dagoberto continuava trabalhando,gestos preciso,dedos ágeis. - Não está aqui - resmungou ,decepcionado. - Movimentou-se . Vou explorar mais abaixo. - A pressão está caindo. Precisa apressar-se - avisou um dos médicos. - Se ao menos eu a encontrasse! - disse Dagoberto. Continuou procurando sem êxito. - É melhor acabar! Ele está mal! Não vai suportar! - Não posso parar agora! Preciso ir até o fim.Aplique coramina. - Já apliquei. A respiração está por um fio! Morelli sentiu aumentar sua angústia. Por um momento imaginou se fosse o seu filho,ali,morrendo. Movido por forte impulso,colocou a mão sobre a cabeça do jovem e disse baixinho: - Meu Deus! Ajude! Juliana! Chame Dora para mim! Se for possível,salve esta vida! Disse isso com tal veemência e emoção que sentiu que a palma de sua mão ardia fogo. - Achei! gritou Dagoberto com alegria. - Aqui está! - A respiração parou - disse o anestesista,assustado. - Santo Deus - murmurou Morelli. Dora,por favor,ajude-nos! Fundo suspiro escapou dos lábios do jovem. Eles trocaram olhares assustados.Seria o fim? Logo notaram que a respiração voltava e em segundos ganhava ritmo normal. - Que alívio! - Ele respira! - Que susto! - É jovem,cheio de saúde,é um bom indício - Dagoberto,satisfeito. - Vamos acabar logo com isso. Quando terminaram,Dagoberto e Morelli dirigiram-se a sala de café. Lá encontraram o anestesista. Os três,segurando a xícara de café sentaram-se conversando. - Olhe, doutor Dagoberto, pensei que ele fosse morrer ali. Sua respiração chegou a parar por uma fração de segundos. O senhor fez um trabalho de mestre, como sempre.Mas a reza do doutor Morelli ajudou muito! - Reza do Morelli! Que história é essa? - No momento crítico,ele rezou mesmo. Chamou o santo. E foi ai que o menino reagiu. Dagoberto riu bem-humorado. - O Morelli? Nunca foi religioso. Ao contrário. Vou mais á igreja do que ele! Morelli não respondeu.Gostaria de contar ao amigo o que acontecera,mas sabia que ele não acreditaria. Além do mais,prometera a Clóvis guardar segredo.Não podia prejudicar Juliana. Conhecia o amigo. Sabia que ele era cético e não acreditaria,ainda que visse. - Seja como for,deu certo. Doutor Morelli,qual é o santo da sua devoção? - Não brinque com essa coisas - respondeu ele,sério. - Pode se dar mal. O outro desculpou-se. - Não quis ofender ... É que você colocou a mão na cabeça do moço e rezou, e ele voltou a respirar. Logo... Dagoberto interveio. - Doutor Oswaldo! Não sabia que era supersticioso! - Não é superstição! Sou um espiritualista. Creio na intervenção das almas do outro mundo. - Você está brincando! - estranhou Dagoberto. - Não. Não estou . Poderia jurar que o que se passou hoje conosco teve uma conotação especial. - É assim mesmo - queixou-se Dagoberto. - Sempre a mesma história. Se o paciente morre,somos responsáveis,incompetentes;quando ele se salva ,foi Deus que o salvou! - Também não precisa ofender-se. Fez um belíssimo trabalho, pode crer - elogiou Morelli. - Concordo,doutor Dagoberto. Aliás ,gosto de trabalhar com o senhor por isso. Admiro sua perícia,sua capacidade. Mas o paciente morreu e voltou à vida! Como explica isso? Morelli calou-se .Lembrava-se de sua emoção ,da súplica veemente que fizera.Chamara Juliana ,evocara Dora. Sentira calor em sua mão e logo o jovem voltara a respirar. Teria ouvido? Dora atendera seu apelo? Sentiu uma onda de emoção. Precisava certificar-se. Como? - Está pensativo,calado. O que é? - Nada,Dagoberto. Afinal o rapaz acabou levando a melhor.Não é bom? - Se é! Essa é uma vitória que me faz bem! Derrotar a morte. Nossa eterna inimiga. Morelli ,durante o dia,não conseguiu esquecer-se do acontecimento.Estaria exagerando? Teria mesmo sua evocação dado certo? Dora teria ouvido.
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Pelas portas do coração
SpiritualEnquanto a cabeça racionaliza,o espírito sente. A razão segue as conveniências do mundo. O espírito busca a essência daquilo que é. Quando a sensibilidade se abre,energias tumultuadas e emoções novas surgem trazendo insegurança,e é preciso estudar a...