O menino e o ventilador

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Simone F. Leistner - Vencedora do 2º Desafio de Quinta

simoneferreira.leistner

Regras desse desafio:

Conto de até mil palavras e complete a história: com o texto inicial:

"Três batidas na porta. Levantou seu rosto do livro, subitamente, assustado. Só ele sabia quem batia na porta daquela forma. "não vou abrir" - pensou.

Não podia ser... depois de tanto tempo?

O coração batia descompassado, entre a vontade de abrir e de ignorar. Se fosse como da última vez..."

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Três batidas na porta. Levantou seu rosto do livro, subitamente, assustado. Só ele sabia quem batia na porta daquela forma. "Não vou abrir" – pensou. Não podia ser ... depois de tanto tempo? O coração batia descompassado, entre a vontade de abrir ou de ignorar. Se fosse como da última vez, a casa restaria de pernas para o ar.

Paralisou, aguardando ser uma alucinação provocada pelo cansaço. No entanto, as batidas se repetiram, no mesmo ritmo. Tentou raciocinar, segurando sua caneca ilustrada por textos Machadianos; ironia. Com a invenção dos condomínios há sempre algum olho observando você, alguma boca comentando sobre sua rotina. Inevitavelmente, seus horários parecem estar estampados em algum almanaque, ficando difícil fingir que não se está em casa.

Quando abriu, lá estava o menino, o ventilador e a avó.

- Como vai a senhora?

- Desculpe, senhor Escobar, ele acordou com a corda toda hoje, não consegui segurar, o senhor sabe, até tento, mas tem dias que não tenho como, sozinha com o menino. Mas ele prometeu não incomodar, era só pra dizer um oi, ele fez promessa, né meu filho?

Ora, ele, feito um carro desgovernado, já havia entrado, tentando abrir a porta do quarto que ficava no corredor, mas desta vez eu havia me feito o favor de passar a chave. E o menino sentou-se, muito contrariado, repetindo que queria entrar. A avó o chamou, disse que ficasse com ela, pois já havia dito oi, e, agora, precisavam ir, ela estava cansada da viagem, e iria preparar um lanche para ele. Piscando para mim, ela disse – voltamos depois, meu filho.

Não fez diferença alguma.

Pois fazia mais de três anos da partida deles, e o menino já tinha quase dez anos. Nossa, como o tempo havia passado, provavelmente isso também estava estampado em sua cara, que ele fazia questão de não olhar muito no espelho. Aliás, desde a saída de Ana de sua vida, parecia que ela havia levado não só seu carro, parte da poupança, como também todo o colágeno de sua vida. Droga, a flacidez tomara conta de tudo, pensou.

Não havia muito o que fazer, o menino deitado no corredor, olhando para o teto, a avó sentada olhando pela porta que dava para a sacada.

– A senhora quer um café? Será que o menino quer um refrigerante? Quer dizer, ele gosta ainda de guaraná?

– Imagina, o senhor não precisa se incomodar, já estamos indo. O menino prometeu, senão ele sabe, depois fica sem o brinquedo, né, filho? Vem com a vó, não vamos mais incomodar o Sr. Escobar.

O menino apenas repetia, olhando para o teto – ventilador - Enquanto girava uma hélice que trazia à mão. Engraçado, aquela cena não me chocava mais como antes, um menino e seu ventilador, meu ventilador, de hélices azuis, que eu comprei no Paraguai com Ana. Estranhamente tudo parece ligado; sim "existe mais sobre o céu e a terra do que prevê sua vã filosofia", Escobar... dizia a voz.

Quando viajamos ao Paraguai ela ficou maravilhada com tudo, e além das quinquilharias todas adquiridas, para minha surpresa, ela apaixonou-se mesmo por um ventilador de pás azuis. Interessante como algo tão valorizado, depois de um tempo, não seja mais alvo de nossa atenção. Foi assim que Ana me deixou, simplesmente foi, porque não havia mais nada que fosse importante ou chamasse sua atenção em nossa vida juntos.

Fiquei menos sozinho com a chegada do menino, no entanto, enquanto ele permaneceu diariamente em minha vida, tudo era estranhamente ácido. Fui corroído pela insistência das pessoas em olhar apenas para a diferença, marcada por uma espécie de medo e pena. Havia sempre um universo de perguntas que eu não fazia questão de responder, afinal, quem precisava fazer tanto questionamento apenas para estar ao lado de outra pessoa.

Degradou-se meu caráter, acho que foi isso. Desde o momento em que a avó me procurou pedindo ajuda com a papelada, pois ela mal sabia ler, e precisava de alguém que fizesse os encaminhamentos que ela não compreendia, afinal, o menino tinha direitos que não podiam ser ignorados.

- Como ele está?

- Como Deus manda, o senhor sabe. Ele é de poucas palavras, mas as professoras dizem que ele é bonzinho na escola. O médico dele começou com outro remédio, pra ajudar a ficar mais calmo, tá bom, ele consegue até dormir mais que antes, não faz mais xixi na cama. Lá onde faz as terapias também é bom, e ele gosta de ir.

- E a mãe?

- Faz tempo que não aparece, mas acho que o menino lembra dela, é os desenhos que ele faz, não sei, ele aponta com o dedo pra o mesmo rabisco azul sempre. Ele gosta muito do azul, por causa do ventilador. É difícil tirar dele, vai pra todo lado, girando ele.

Ele se aproximou, me pegou pela mão e me mostrou a sacada, apontando. Não sei porque era tão incômoda sua presença. Acho que me lembrava do quanto eu era patético por não saber lidar com a situação. Eu nunca consegui o incluir em minha vida, a verdade era essa, não que eu precisasse, não era minha obrigação, mas eu me sentia assim com ele. Pensava se ele sabia, meu jeito me denunciava.

Eu era advogado, não médico. Naquele dia fatídico não havia papel que me fizesse saber o que fazer. O menino ficou muito nervoso com os latidos na vizinhança; também não quis comer, a avó disse, porque agora só gostava de alimentos amarelos; ela não sabia mais o que dar a ele. Então, tentamos acalmá-lo por mais de hora, nada. Então, eu gritei como nunca, o segurei pelos braços e sacudi com força. Ele paralisou, me olhando, fixamente, jogou o ventilador com força no chão, e a hélice se soltou. Só assim parou.

A avó decidiu ir embora da cidade pouco depois daquele dia, achava que faria bem para o menino. Eu não havia mais tido notícias dele. Achei melhor, ele era um mistério para mim, assim como Ana. Quebra-cabeças faltando peças.


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Simone F. Leistner - perfil no Intagram: simoneferreira.leistner

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⏰ Última atualização: Jun 19, 2020 ⏰

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