O começo

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A sensação era estonteante;uma mistura de paraíso, um paraíso viciante.Logo após se transformada me vi ali, cercada por corpos humanos, a atmosfera era triste e horripilante, mas não pra mim, eu estava com fome, o que eu senti já havia acabado e eu queria sentir de novo, e por que não me aproveitar de toda aquela energia mágica ao meu redor?Eles já haviam se matado mesmo.

O que restava deles foi tão pouco,alguns mesmos, não tinham mais nada quando chegavam sua hora, e eu ainda tinha fome.

Após terminar com eles eu já me sentia melhor, não só por dentro, minha pele agora brilhava mais e tinha uma coloração mais viva, minhas caudas estavam mais macias e sensíveis, mas não ficariam desse jeito por muito tempo se eu não conseguisse alguém para consumir. Aquela cena de guerra e morte não me fazia bem, fui até o homem que me deu à vida, mesmo que não fosse sua intenção, beijei-o como forma de agradecimento e fui em direção ao norte, era lá que estavam as cidades e era lá que eu me alimentaria.

Mas não precisei andar muito até conseguir o que queria.

Já andava havia algumas horas quando, por meio dos meus ouvidos de raposa ouço o chacoalhar de rodas que tocavam terras esburacadas. Corri para as árvores e me escondi por ali e esperei até ver o que eram;humanos em guerra para serem mortos em guerra ou humanos em guerra para serem mortos por mim.

Uma dupla de cavalos puxavam uma carroça, no comando estava um homem que aparentava certa idade e atrás havia vários galões que balançam a cada buraco que passavam;meu jantar.

Pouco antes de chegarem onde eu havia estado, tropecei em um galho e sai da floresta cambaleando, minhas caudas revezando em se agitarem e em parecerem sem vida, assim continuaram até chegar na Estrada por onde o homem passava.

Os cavalos relincharam e até mesmo se empinaram, mostrando certa agitação

-O que foi rapazes?-Disse o homem, puxando as rédeas com firmeza.

Ele olhou para a frente e me notou ali no chão, estirada na frente da sua carroça.

-O meu Deus!-Ele desceu de seu banquinho e correu até mim-Moça, moça, a senhora ta bem?

Abri os olhos e pude ver que era um fazendeiro. Sua idade avançada era visível, mas não diminuía sua essência vital.O rosto era coberto por uma barba branca rala e seus olhos eram pequenos, havia experiência neles, sofrimento e felicidade, como todo caipira sua cabeça era protegida por um chapéu de palha e sua roupa era antiga, os remendos aqui e ali eram notáveis.

-E-Eu...onde eu...-A minha voz saia cansada e confusa.Como tinha que ser.

-Calmai moça, vou pegar um pouco de leite pra "sinhorita"-Apesar da idade seu jeito caipira não devia ter mudado nada.

Ele se levantou e foi até a parte de trás da carroça, onde estavam os barris e voltou com um copo de metal cheio de leite

-Aqui, toma isso-Me entregou o copo-A moça vai se sentir bem melhor de tomar, é o melhor leite da região.

Realmente o gosto era maravilhoso, mas não era o que eu queria.

-A senhorita se sente bem agora?

-O-obrigada, eu já me sinto melhor...-Outro desmaio.

Ouvi seus gritos de preocupação, seus "alguém acuda", e senti o esforço dele ao tentar me carregar até a carroça.

Não tinha muita noção de tempo mas "acordei" assim que passamos por um buraco que nos fez afundar um pouco

-O-Onde...

-Ah!A moça acordou!"Ce" me deixou preocupado viu?

-Me desculpe, eu me sentia tão fraca-Disse enquanto me indireitava ao seu lado-Obrigada por me ajudar.

-Que isso, precisa agradecer não, quem não ajudaria uma moça "bunita" como você?-Todo o galanteio caipira foi respondido com um sorriso tímido- Mas me diga, o que a moça passou pra modo de ficar nesse estado?

-Eu...Eu não lembro, eu lembro das luzes, do vermelho e então....-Enfiei o rosto nas mãos e senti sua mão nas minhas costas.

-Foi a guerra!eu e minha "mulhe" sempre falamo, a cada dia que passa esses noxianos destroem mais e mais vidas-O tom de raiva e dor na sua frase era visível-Ai, até os cavalos sabem!-Os cavalos estavam agitados, mas não era por culpa desses tais noxianos, eles sabiam o que esperava pelo seu dono- "Ocê" tinha família por aqui menina?

-Se tinha, não lembro...-Levei uma mão a cabeça e fiz uma expressão de confusão.

-Deve ser perda "di" "mimória", mas é melhor assim sabe?Evita todo o pesar.-Disse ele, com um tom de tristeza profunda

-O senhor também...perdeu alguém?-Perguntei calmamente, olhando sua expressão.

-Perdi, perdi sim, meu filho mais novo...-O tom de voz era melancólico, sonhador-A guerra, ou "milhor", esses noxianos-Agora havia desprezo-chegaram aqui do nada e destruíram tudo, meu filho tava brincando nessa hora...-Não conseguiu falar mais nada.

-Eu sinto muito por sua perda-Pesar.Era um sentimento delicioso.

-A senhorita é gentil.

-Então, para onde estamos indo?-Perguntei, mudando de assunto.

-Ah, "nois" vai pra cidade, tenho que vender esses galão de leite ai que a moça provo, tudo bem pra ocê?

Maravilhoso.

-Tudo bem, eu não tenho pra onde ir mesmo...-A minha voz saiu com um tom mais triste do que o esperado

-Fica assim não moça, uma moça bonita assim como você na cidade consegue um marido fácil.-Seu tom era gentil.

-Obrigada-Agradeci com sorriso tímido.

O tempo foi passando e ao cair da noite ele decidiu que era melhor acampar.

-A Estrada a noite é perigosa hoje em dia, nunca se sabe quando um noxiano vai aparecer.Vou tentar aquietar os cavalos se não vai parecer que a gente Ta querendo briga.

Deixei-o ir até os cavalos que relinchavam para tentar avisa-lo do perigo e fui até uma árvore, juntei minhas caudas como se fossem um colchão e fingi dormir.

Horas se passaram, a noite já era profunda e o silêncio era grande, apesar dos cavalos terem parado continuam a bater os cascos na terra.

Me levantei calmamente e fui em direção ao senhor que me ajudara.Parte de mim dizia que aquilo era errado, ele me ajudou mesmo no sabendo quem eu era e nem tentou se aproveitar de mim mas outra parte dizia que eu fiz tudo aquilo só para esse momento.

Me agachei ao seu lado e retirei o chapéu que cobria seu rosto.

Dormia igual a um caipira.

Passei os dedos pelo seu corpo, seu peito e suas mãos, me aproximei do seu rosto e o beijei na bochecha.

-M-moça?-Sua voz era confusa, talvez pensasse que era um sonho.

-Sim, sou eu.-Respondi com uma voz suave.

-O que que "ocê" ta fazendo?

-O que eu quero- Respondi com uma voz envolvente-E o que você quer.

Entrelaçei seus dedos nos meus e calmamente dei um beijo em seus lábios.

Tão vivo.Senti todos os sentimentos pelos quais ele já passara.O casamento.Felicidade.O nascimento do filho.Orgulho.A perda do filho.Tristeza.

Seus olhos abriram, assustados mas já não havia o que ser feito, o beijo estava no final e com ele a sua essência vital.

Suas mãos soltaram as minhas e o calor dos seus lábios sumiram, deixando somente o olhar arregalado e a expressão de surpresa.Junto com a minha satisfação.

-"Agradicido"-Fechei seus olhos e cobri seu rosto com o chapéu.

Me sentia cheia de energia mas devia poupa-la para o outro dia, ainda não sabia de quanto em quanto tempo precisaria me alimentar e quanto uma vida tão velha poderia me garantir.

Me recostei na árvore e, fazendo minhas caudas de cama, adormeci.

Vida FalsaWhere stories live. Discover now