"De Cavaleiro a Grande Rei"

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O Grande Cálice do Jardim pulsava de energia, e não só ele, tudo parecia permeado por um brilho diferente. Nickos, agora de nome incompreensível, reunia todos os servidores ali em torno.

Na língua deles, falou com orgulho que transbordava em suas palavras e gestos:

-O nosso amado e magnífico Cavaleiro hoje se prepara para se tornar o Grande REI de Copas! Graças ao empenho de todos vocês! A Taça está plena até a borda, a ponto de derramar tanta energia coletada por vocês! A transformação do Cavaleiro irá trazer benefícios a todos! Ampliaremos nosso reino, o trabalho será mais leve. Não irão se arrepender. Apesar de eu ser novo aqui, em comparação com vocês, nosso Senhor me treinou para entender a dinâmica de seu trabalho, de forma que eu também possa agir e ajudá-lo a administrar. Oh, vejam...

O palácio irradiava um brilho azulado. Raízes à mostra, inúmeras delas, como veias, ligavam o Cálice à moradia do Cavaleiro.

-Com licença, senhor Tzarrshsssasthreth, o que ainda falta?

-Quando o sol estiver a pino, o Cavaleiro terminará os rituais preparatórios e finalmente poderá absorver todo o conteúdo da Taça.

Os Servidores mais inteligentes tinha consciência da poderosa fonte de energia que estava bem diante de seus olhos. Com frequência se pegavam desejando tê-la para si e, por consequência, todo aquele reino. O próprio "Nickos" olhava com desejo para a Taça. Respirava fundo e concentrava-se em outras coisas. Sabia que ela era vigiada por quatro monstros, ocultos dentro das quatro esferas que adornavam-lhe as bordas.

Em menos de três horas, o Grande rei surgiria. Todo o trabalho no Jardim foi suspenso naquele dia, a fim de que todos pudessem acompanhar, ansiosos, a Transformação.

O Sol realizava seu percurso.

O burburinho tomava conta. Como seria a nova forma do Cavaleiro? Ele já era enorme, pensavam os trabalhadores anões. Imagina quando se tornasse Rei.

"Rei. Grande Rei."

Ele estava lá dentro, misterioso, cauteloso, sempre sério, mas zeloso por seu reino. E óbvio, dono de uma ambição gigantesca, como todos os Cavaleiros de sai dimensão. Na câmara mais interior, nas profundezas do Palácio, auxiliados por Servidores de alto nível. Vindos especialmente de outra dimensão, talvez familiares. Ritos secretos eram feitos, urros ouvidos, barulho de correntes, grunhidos de feras, palavras desconhecidas lançadas com firmeza.

O resplandecente titã de ouro alcançou o ponto tão aguardado, duas parte após o zênite. A terra estremeceu. Uma, duas, três vezes. Do palácio um poderoso grito, como um trovão, estremeceu o jardim com muito mais potencia. "Nickos" e os demais sentiram medo. Teria sido boa ideia? Os dragões que serviam de montaria recuaram e viraram a cabeça. Sinal de perigo.

O silencio solene, no entanto, foi rompido por uma voz feminina, em alto e bom som:

-Como assim, não me convidaram para a festa???

Todos se viraram na direção dela, estupefatos, inclusive seu ex-amigo. A encarava pasmo.

-Você é louca de vir aqui??? – não sabia se era preocupação ou apenas reação a tamanha petulância. O velho Nickos existia ainda lá dentro, em algum lugar nos confins de sua alma?

Tiha, que havia chegado toda cheia de si, agora percebia o perigo. Não tinha noção de que os Servidores eram tão numerosos. Os dragões seguiram o impulso de voar e combatê-la, igual aos glóbulos brancos que se unem e avançam contra invasores no corpo humano.

-Eu, herdeira da Rainha dos Céus e do Rei da Terra, clamo por sua força! Sangue dos sagrados grifos ancestrais, companheiros de deuses, clamo por sua força!

Os dragões se lançaram contra Tiha, mas uma grande explosão de luz os afastou com violência e os forçou a desviarem o olhar. Ela não era mais a humana, e sim a radiante grifa de olhos brilhantes. O banho de sol lhe fizera bem. Suas penas e seus pelos rutilavam.

O Jardim estremeceu com o ribombar de um rugido, o palácio atraiu as atenções e Tiha aproveitou a chance. Bateu as asas com toda força, provocou uma impressionante lufada e derrubou todo mundo no chão e os mais fracos foram pelos ares. Nickos se manteve intacto.

-Eu te proíbo de atrapalhar a chegada do Grande Rei!

Ele desembainhou uma faca, que pareceu bem inofensiva. Mas para surpresa de Tiha, ele a lançou no ar, ela rodopiou e num clarão se transformou numa espada longa e bem afiada. Num salto, Nickos avançou contra Tiha, mas graças à sua agilidade, escapou do golpe quase certeiro.

Por bastante tempo Tiha somente se esquivou das investidas, receava ferir o amigo, pois uma pequena esperança brilhava dentro de si. Evocou uma outra lufada, o suficiente para arrancar o gramado do solo e bloquear a visão de Nickos, e então se afastou rapidamente. Seu oponente estava ávido por alcança-la e correu com toda sua velocidade pelo Jardim.

Tiha sobrevoou boa parte, na intenção de ter maior ciência do local, ao que seus olhos captaram algo por entre um pequeno bosque e foi impelida a descer e averiguar, mesmo que isso custasse caro. Nesse ínterim, os guerreiros do Jardim iam em sua direção e os dragões também.

-Nickos! Meu amigo...

O corpo de seu amigo, sua parte mortal, jazia ali, como um lixo jogado num canto, a espera de ser decomposto pelos vermes. Então, pensou com grande pesar, realmente sua existência se esvaíra. Por fim, com suas garras jogou sobre o corpo grama e terra e o cobriu.

Sentiu uma chicotada arder suas costas e alçou voo. Uma das servidoras, armadas do chicote de aço, lhe golpeou e tentou novamente. Uma multidão se aproximava e não enxergava o, digamos, Valete de Copas.

-Muito bem, agora é minha vez, seus infelizes!

Canalizou toda sua raiva e na velocidade da luz traçou um círculo luminoso no alto do Jardim:

-Coroa de Hélios!

Soou um barulho de uma arma letal reunindo energia e no instante seguinte despejou uma gigantesca rajada de luz que fulminou tudo e todos dentro do diâmetro. Os gritos encheram o ar e a terra estremeceu outra vez.

Quando a explosão se esvaiu, muitos corpos jaziam, principalmente o dos pequenos escravos. Os maiores tentavam se reerguer.

Tiha se descuidou ao contemplar seu feito e a espada foi cravada em suas costas. Ela gritou, caiu e o Valete largou uma gargalhada, arrancando a arma do corpo dela, banhando seu punho com o sangue dela. A Grifa despencou e se desesperou. Sua visão começou a ficar borrada e o corpo amolecia.

-Insolente! O Grande Rei está vindo! E seu reino será reconstruído! Seu sangue irá alimentar nosso solo e mais poder germinará para Ele!

O Valete ergueu a espada e baixou com toda sua força sobre Tiha esmorecida no chão, tingindo o gramado de vermelho escuro.

Dentes afiados foram mais ligeiros e se fecharam no braço que segurava a espada. O Valete perdeu o equilíbrio e caiu para trás, tentando se desvencilhar do que não conseguia discernir. Uma sombra o cobriu e a pata pesada munida de garras muito mais potentes que as de Tiha o pressionaram no chão duro, paralisando-o.

Tiha estava quase desmaiando, mas pôde ver que um grifo escuro como a noite a salvara. Logo, sentiu seu rosto ser lambido por uma língua quente e plena de afeto. Era a cadelinha branca que ajudara dias atrás. Não era apenas um afago e o sério ferimento que a garota grifo sofrera se fechava com sucesso. Suas forças eram restabelecidas, assim como seus sentidos.

Ela procurou se reerguer:

-Mãe! E você, amiguinha... Como...

A Sociedade dos Grifos - "Tiha"Onde histórias criam vida. Descubra agora