O vigia noturno - parte 2

5 1 1
                                    

Eu estava desalentado; mal tinha vendido dez revistas, uma fração do que eu esperava vender. Porém já havia vivido à base de latas de feijão barato com nacos de pão ainda mais barato, então sabia que não morreria de fome. Tinha dinheiro suficiente para comprar gás, pagar a conta de luz e ainda comprar uma ou duas refeições para Mike. Mas eu precisaria de novo no fim de semana, algo que realmente não queria fazer, sobretudo porque havia previsão de mais chuva e eu andava me sentindo um pouco indisposto, com tendência a piorar.
Quando me sentei no ônibus de volta para casa, senti os primeiros sinais da gripe em meus ossos doloridos e ondas de calor. "Excelente, era tudo de que eu precisava", pensei, suspirando profundamente em meu assento e me ajeitando para um cochilo.
A essa altura, o céu assumiu um tom muito escuro, e os postes de luz resplandeciam. Havia algo na Londres noturna que fascinava Mike. Enquanto eu tentava cochilar, ele ficou olhando fixamente pela janela, perdido em seu próprio mundo.
O trânsito de volta a Tottenham estava tão ruim como estivera de manhã, e o ônibus avançava lentamente, a passo de lesma. Em algum lugar após Newington Green, devo ter adormecido completamente.
Fui despertado com algo me batendo de leve na perna e bigodes me roçando a bochecha. Abri os olhos. Mike estava com a cara perto da minha, dando-me patadinhas no joelho.
– Que que é? — eu disse, um pouco irritado.
Ele apenas inclinou a cabeça, como se apontasse para a frente do ônibus. Então começou a se movimentar, saindo do assento em direção ao corredor, lançando-me olhares ligeiramente preocupados enquanto seguia adiante. Eu estava prestes a perguntar "Aonde você está indo?", mas então olhei para a rua e percebi onde estávamos.
– Ah, droga! — lamentei, pulando imediatamente do assento.

Peguei a mochila e dei sinal para o motorista para bem em cima da hora; mais trinta segundos e teria sido tarde demais. Se não fosse pelo meu pequeno vigia noturno, teríamos perdido nosso ponto.
     A caminho de casa, entrei rapidamente na loja e conveniência na esquina de nossa rua e comprei alguns comprimidos baratos para a gripe. Comprei também alguns petiscos para Mike e um saquinho de seu jantar de frango favorito. Era o mínimo que eu podia fazer depois de tudo. Fora um dia infeliz, e eu até podia sentir pena de mim mesmo. Mas, de volta ao calor da minha quitinete, observando Mike devorar sua ração, percebi que, na verdade, eu não tinha motivos pra reclamar. Se eu tivesse ficado cochilando dentro daquele ônibus teria acabado a quilômetros de distância! Olhei pela janela e vi que o tempo estava piorando. E se eu tivesse ficado mais tempo na chuva? Poderia facilmente desenvolver algo bem pior do que uma leve gripe. Tive sorte de escapar...
Eu sabia que era sortudo. Há um velho ditado que diz que o homem sábio não chora pelas coisas que não tem, mas agradece pelas que possui.
Depois do jantar, sentei-me no sofá improvisado, enrolado num cobertor, bebericando uísque aquecido com mel, limão e água morna — o uísque era de uma miniatura antiga que eu tinha largado por ali. Olhei para Mike, que cochilava perto do aquecedor, seu lugar favorito, os problemas do dia há muito tempo já esquecidos por ele. Eu disse a mim mesmo que deveria ver o mundo como Bob. Afinal, havia tantas coisas boas pelas quais eu deveria ser grato.

    Já fazia pouco mais de dois anos que eu havia encontrado Mike ferido no piso térreo deste mesmo prédio. Quando avistei à luz sombria do corredor, ele parecia ter sido atacado por outro animal, pois estava com ferimentos na parte de trás das patas e no corpo.
    No começo imaginei que pudesse ter um dono, mas, depois de vê-lo no mesmo lugar por alguns dias, levei-o para minha quitinete e cuidei dele até sarar. Tive de desembolsar quase todos os meus centavos para comprar remédios, porém valeu a pena: eu realmente gosto da companhia dele. Nossa ligação foi instantânea.
    Pensei que seria uma relação curta. Ele parecia desgarrado, por isso, presumi que naturalmente voltaria às ruas. Mas ele se recusou a sair do meu lado. Todos os dias eu o colocava para fora e tentava fazê-lo seguir seu rumo, no entanto ele vinha atrás de mim rua abaixo ou surgia repentinamente no corredor ao anoitecer, convidando-se para entrar e passar a noite comigo. Diz a lenda que são os gatos que escolhem os donos,  não o contrário. Assim, percebi que ele tinha me escolhido. Um dia, seguiu-me até o ponto de ônibus, a mais ou menos um quilômetro e meio de distância, na Tottenham High Road. Estávamos longe de casa, de modo que, ao afugentá-lo e vê-lo desaparecer por entre a multidão agitada, imaginei que não o veria mais. Todavia, quando as portas do ônibus se abriram, ele apareceu do nada, saltando ligeiro, e eu só pude ver um borrão alaranjado afundando-se no assento do meu lado. Foi assim.
    Desde então somos inseparáveis, duas almas ganhando a vida com dificuldade nas ruas de Londres.
    Eu suspeitava que fôssemos realmente almas gêmeas, cada um ajudando o outro a curar as feridas do passado conturbado. Eu dei a Mike companhia, comida e um lugar quente para deitar a cabeça à noite; em troca, ele me deu esperança e direção na vida. Ele me abençoou com sua lealdade, amor e humor, e também com um sentido de responsabilidade que eu nunca sentira antes. Também me presenteou com algumas metas e me ajudou a ver o mundo mais claramente.

    Por mais de uma década fui um viciado que dormia de relento, em soleiras de porta e abrigos para sem-teto, ou em acomodações precárias por toda a cidade. Nesses anos perdidos, estive alheio ao mundo, absorto na heroína, anestesiado na solidão e na dor da minha vida cotidiana.
    Como um mendigo, tornei-me invisível à maioria das pessoas. Em consequência, esqueci me de agir no mundo real e de interagir com as pessoas em muitas situações. De certa forma, eu fiquei desumanizado, morto para o mundo. Com a ajuda de Mike, eu estava lentamente voltando à vida. Já fizera grandes avanços ao dar um chute no meu vício em drogas, livrando-me da dependência de heroína e metadona. Sim, ainda estava sob efeitos da medicação, mas podia ver uma luz no fim do túnel e esperava estar completamente limpo em breve.
    Não foi uma jornada fácil. Longe disso. As coisas nunca são fáceis para um viciado em recuperação. Eu ainda tinha o hábito de dar dois passos à frente e um para trás, e trabalhar nas ruas não contribuía muito nesse aspecto, pois não é um ambiente onde a bondade humana transborda. Sempre havia encrenca ao virar a esquina, ou então a encrenca aparecia para mim: eu tinha um talento especial para atraí-la.
    Na verdade, eu ansiava desesperadamente por sair das ruas e deixar aquela vida. Não sabia quando nem como isso seria possível, mas estava determinado a tentar.
    Por ora, o importante era valorizar o que eu tinha. Pelos padrões da maioria das pessoas, não parecia ser muito. Nunca tive muito dinheiro, não morava num lugar bonito nem possuía um carro. Mas minha vida tomou um rumo muito melhor em comparação com o passado recente: eu tinha minha quitinete e o meu trabalho como vendedor ambulante da revista The big issue. Pela primeira vez em anos eu estava indo na direção certa — e tinha Mike para me oferecer amizade e me guiar pelo caminho.

    Ao levantar-me para ir dormir mais cedo, inclinei-me e baguncei delicadamente os pelos do pescoço de Mike.
     – Onde eu estaria sem você amiguinho?

___________________________

Esse foi o fim de uma das histórias do cotidiano de James e seu gato Mike, espero que tenham gostado

Me digam o que vc acharam do cap pq isso me deixa muito feliz ❤️
Bjs, tchau 😘

Pelos olhos de MikeWhere stories live. Discover now