» Capítulo 03

1.5K 224 82
                                    


ᴀɴʏ ɢᴀʙʀɪᴇʟʟʏ

  Eu queria tanto sentir alguma coisa. Mas nada. Nada, nada, nada. Não sinto absolutamente nada.

    E mesmo assim, se for para acreditar no que estou ouvindo, faz dez minutos que alguém entrou em meu quarto. Um homem. Acho que de uns vinte quatro anos. Não fumante, pelo tom de voz. Mas isso é tudo o que consigo dizer dele.

    E só posso acreditar mesmo quando ele diz que me beijou no rosto. Eu podia esperar o quê? Dar uma de Branca de Neve? O príncipe encantado chega, me beija e, tã-tã-tã-tã! "Bom dia, Any, eu sou Fulano, blá-blá-blá, eu acordei você e agora vamos ali nos casar." Se eu tivesse acreditado nisso, teria sofrido uma decepção cruel, porque nada disso aconteceu.

    Tudo é muito menos interessante. E resumo assim: "Sou um cara que se enganou de quarto
(enfim, é o que suponho, porque senão não vejo como ele teria aterrissado aqui) esperando a tempestade passar" (algo de que me dei conta há poucos instantes). E que já respira profundamente.

    Sou curiosa. A curiosidade não é uma coisa química, ainda consigo saber o que ela é. Portanto, tenho curiosidade de saber quem é que está sentado na cadeira ao meu lado. Não tenho como encontrar essa resposta. Por isso me contento em imaginar. Mas logo deixo isso para lá.
Até agora, além dos médicos, das enfermeiras e da faxineira, ninguém que eu conheça entra neste quarto. De vez em quando, eu ficava pensando na roupa que ele estaria vestindo... Nada mais. Mas estou realmente incomodada; além da voz dele, não tenho nenhuma outra pista. Eu a considero muito agradável, por sinal. De fato, isso muda tudo. É a primeira voz nova que ouço em seis semanas e acho que, mesmo se ela fosse rouca ou banal, eu a teria amado do mesmo jeito.

Os namorados de minha irmã nunca abrem a boca. A única coisa que percebo deles é, eventualmente, alguma troca de saliva com ela ou então eles ficam no corredor. Mas essa voz nova tem mesmo um timbre particular, algo que mistura, ao mesmo tempo, leveza e paixão.

Isso me permitiu confirmar que dia é hoje com mais facilidade. De fato, faz cinco meses que estou aqui e, ao que tudo indica, hoje seria meu aniversário.

A única coisa que me surpreende é minha irmã não ter me parabenizado. Talvez ela tenha achado que era inútil. Ou talvez tenha simplesmente esquecido. Eu queria poder sentir raiva dela, mas não consigo. Mas vinte e quatro anos têm de ser festejados, não é?

Algo se mexe na cadeira ao meu lado. Ouço um tecido deslizando e reconheço o barulho de alguém tirando um suéter. Eu o ouço bloquear a respiração durante o tempo necessário para passar a gola pela cabeça, os pequenos sobressaltos em seu fôlego para tirar os braços das mangas e liberar o busto. Escuto quando o suéter é posto em um canto, depois, de novo, a respiração regular.

Estou tensa. Ou, pelo menos, me agrada imaginar que estou. Todas as partes ainda ativas em mim, a saber, apenas minha audição, estão debruçadas sobre essa novidade como se estivessem debruçadas sobre um bote salva-vidas. Então, escuto, escuto, escuto. E, pouco a pouco, começo a desenhar em minha cabeça.

A respiração dele está tranquila. Deve ter adormecido. O barulho de chuva na janela é leve, e posso distinguir o barulhinho que a camiseta dele faz contra o plástico da cadeira. Ele não deve ser corpulento, senão não respiraria assim. Tento comparar com pessoas que conheço, mas não é sempre que se pode escutar alguém respirando. Às vezes eu fazia isso com meus ex, quando acordava antes deles. Alguns diziam que isso era ridículo e, em geral, eu não ficava muito tempo com eles.
Lembro um cara que respirava em três tempos. Eu quis rir no ato, mas me segurei para não despertá-lo. Esse também não durou nada.

De todo modo, minhas histórias de amor são especialmente caóticas. Muito menos numerosas e frequentes que as de minha irmã. Me lembro de umas dez. Algumas curtas, outras bem mais longas.

I'm hereOnde histórias criam vida. Descubra agora