We're family

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-- Você sente falta da sua família?

Tarde de inverno, o sol se punha no horizonte, jogando raios rosados sobre a neve. Já tinha quase dois anos que haviam criado lar naquele lugar, e um que passaram de companheiros para cônjuges.

Foi uma estrada longa, desde de o incidente em DreamTale que havia forçado Night a deixar para trás uma antiga vida que não sabia se deveria sentir saudades...
... Dez anos longos como um milênio, e por talvez metade desse tempo conhecia o monocromático. Não começaram uma amizade imediatamente, mas ambos entendiam um ao outro, entendiam o peso da solidão e perda, mesmo que de formas diferentes.

Compreensão por si só não constrói uma relação, mas a sensação de não solidão que trás com certeza é um catalisador.
Demorou cerca de um ano e enrolações que os faziam querer bater em seus "eus" do passado, o que não fez realmente acontecer ser menos bonito.

Mas, sempre existia aquele inconveniente.

"Formas diferentes".

Mesmo se ficar lembrando do incidente, em parte, o afastamento foi por vontade própria. Dez anos é muito tempo, poderia fazer uma tentativa de reunião, mas não o faria. Não porque odiava o irmão, ou DreamTale, mas porque a presença dele, e aquele lugar, não faziam bem à sua saúde mental.

Cross não teve realmente uma escolha. Pelo contrário, havia tentado ativamente restaurar, e falhado. Por isso havia sentido a necessidade de trazer essa interrogação.

Vulnerabilidade.

-- Isso não é uma questão apropriada.

É tão fácil se agarrar à primeira boa coisa que surge quando nenhuma outra opção é realmente boa. Talvez por isso tantos acabavam se viciando em drogas.

"Saudade", como qualquer outra emoção, é bem variável. Luto, por si só, é uma coisinha inconsistente que pode em um momento deixar um espírito em paz e no outro o de virar. O que queria não era um simples "Sim ou não", mas como seria dito. A resposta em si já estava óbvia a muito tempo.

E ainda, evitava.

Evitar uma questão é basicamente afirmar que a verdadeira resposta é uma que vai causar maus sentimentos, e como estava óbvia desde sempre... Não tem como saber o que esperar.

-- É uma questão válida. -- O ex guardião corrigiu, em uma insistência movida a necessidade; a sala onde estava dava uma visão privilegiada do fim de tarde -- Não tenha uma ideia errada, eu sei que não sou um substituto.
Teve que desviar o olhar. Veja só, a outra faceta.

-- Tem razão.
A resposta foi tão rápida, e com uma confiança repentina, que imediatamente atraiu sua atenção de volta. E para o surpreendeu mais, seu X com patas estava sorrindo.
-- Não é, nunca foi, e nunca vai ser. Pois bem, a resposta da sua pergunta é sim, eu sinto, e se pudesse os trazer de volta o faria sem hesitação.

Feliz agora? Tem a sua confirmação...

-- E alegremente os introduziria ao pedacinho de lua com quem casei.

Surpresa! Mesmo que tecnicamente não deveria ser.

O clima ainda estava estranho, apesar do gancho de fofura. Era um pouco estranho a maneira como colocou, deveria significar alguma coisa?

-- Porque, apesar de sentir falta deles, agora, você é minha família. É o meu marido, Moon. A pessoa que eu jurei a cada divindade potencialmente existente que dividiria o resto dos meus dias.

Talvez estivesse vendo com lentes cor-de-rosa, mas, parecia que a cada palavra ele ficava levemente mais acanhado. Foi inesperado, não dava para mentir. Aquilo não era um hábito, não eram o casal que falava "eu te amo" a cada dois minutos porque estava pairando no ar quando estavam na mesma sala e ecoando pelas paredes em seus nada raros momentos de intimidade.

O casal de aproximou de volta, com alguma hesitação, então suas mãos se juntaram. Esse é o lado ruim de quando não se tem o hábito, quando ocorre, se torna estranho.
Dessa vez, foi a vez do ex guardião se pronunciar:

-- Também sinto falta da família em DreamTale, do meu irmão e da minha mãe, mas não sinto falta do que me trazem. Eles não me fazem bem. Você me faz... Você também é minha família, X.

Sim, sim, com certeza, estranho, mas estranho não é necessariamente ruim.

Aquilo foi uma grande abertura. Haviam posto para fora do peito.
Não fosse um pequeno detalhe: a última fala havia sido hesitante.

-- Talvez nem tanto. -- o híbrido disse baixo e com um leve riso, uma das mãos ainda junto à alheia indo para a frente do peito alheio, onde a alma pulsava com força -- Sua ideia de uma família é um pouco mais "old school", mesmo que não possa te culpar.

O último comentário o cutucou um pouco, mas, engoliu, afinal, tinha de fato idade de três dígitos. O que interessava era o que significava. O estranho ligamento de quem se dedica um ao outro por um longo tempo, o não dito acaba valendo o mesmo que mil palavras.
-- Esse nível é bem alto. Não vou me reduzir a esse tipo de escór- ghm!

Teve a fala interrompida por um beijo repentino. Um beijo superficial que estava mais para um selo demorado, mas um beijo do mesmo jeito, e que atiçou do mesmo jeito. O bastante para se sentir mal quando se afastaram.

-- Um ano é suficiente e estou pronto.
Talvez, não exatamente pela frase em si, mas por como dita, o impactou de um jeito estranho. Estavam muito próximos, apenas as mãos juntas entre as roupas que cobriam seus troncos.

Isso foi uma permissão, tinha permissão...
Então se permitiu ceder.

Assim continuaram, aproveitando o calor agradável que vinham de seus corpos, com a afeição que construíram em quatro anos. A ideia era um pouco assustadora, mas enquanto estivessem juntos estariam bem.

Em parte, o conforto deu lugar a uma sensação não muito agradável, a de se afastar de si mesmo sem nada poder ser feito. Dissociação?

A sensação persistia, mas parecia querer se soltar. Se viu enxergando outro mundo por olhos que não eram seus, sentindo emoções que não eram suas. Antigos sonhos e memórias se misturando uns aos outros como se sempre estivessem associados.
Para ambos os lados.

Mas, mesmo que a sensação passada fosse ruim, e houvesse um certo medo do estranho ao fundo, estava sempre encoberta com uma camada de conforto; não importava o que significavam ou o quão fortes e frescas fossem, naquele momento nada poderia dar errado. Uma alegria e recepção que nunca nenhum dos dois havia experimentado antes, e talvez nunca reproduzissem por ser o caminho do temido vício.

Só por um momento, se permitiu abrir novamente os olhos, e não houve o mínimo de surpresa quando encontrou o cônjuge fazendo o mesmo.

A associação aos poucos começou a desfazer, o que havia carregado consigo agora pairando sobre as mentes como um sonho do qual haviam acabado de despertar.

Devia ser uma linda imagem - não, com certeza era.
O casal de amantes apreciando na última luz do crepúsculo a pequenina alma que haviam gerado. Recém formada, não parecia muito maior do que um mínimo ponto de luz, mas, conectado à alma do ex-guardião e recebendo o cuidado que precisaria, logo se tornaria uma criança saudável.

Hora de crescer com sua pequena família.

Family (Crossmare)Where stories live. Discover now