Estranha como o lado negro do Sol

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Eu estava sentada de frente para minha escrivaninha. Pela janela eu conseguia ver o jardim de minha mansão, parecia estar agradável lá fora... Quanto tempo faz desde a época em que minha única preocupação era enervar os empregados dos meus pais correndo por ali como uma afetada? Nunca mais consegui sentar lá fora e encher meus pulmões com aquele ar puro que vinha diretamente da floresta e do riacho escondido em seu interior. Não é que eu não quisesse, só... não tinha mais graça. Além de meus códigos como uma dama responsável e respeitável também não me permitirem tal ousadia.

Acordo de meus devaneios com o som dos passos de Sebastian. Ele parou ao meu lado e acompanhou meu olhar até a janela. Ele estava diferente naquela manhã... Algo nos olhos dele me fez perceber que ele estava triste, ou talvez preocupado. Sebastian me deixava confusa.

— A senhorita tem visita, my lady — ele finalmente olhou para mim.

— Quem é?

— Conde Tokudaiji. Ele a está esperando lá embaixo.

— Kyro? Mas o que será que ele quer dessa vez?

Levantei-me e fui caminhando até o corredor, era só o que me faltava, nem a vista me era permitida mais... O som alto dos meus passos e dos dele me seguindo ecoava alto pelo corredor, nos mantivemos em silêncio todo o caminho, sem saber que palavras seriam usadas normalmente em um momento como esse. De repente, vi um quadro de um senhor de cabelos grisalhos com uma garotinha sentada em seu colo. Eu parei e encarei o quadro. Aquela garotinha era eu quando pequena, mas quem era aquele homem?

— Este é seu avô, my lady. Não se lembra? — Sebastian disse, respondendo à pergunta que eu nem chegara a fazer.

Ignorei-o e continuei andando; não, não me lembrava daquele senhor. Mas viver significava isso para mim, a cada ano, a cada dia, meu passado ia se esvaindo por entre meus dedos. Minhas memórias eram perdidas tão facilmente quanto eram criadas... suspirei e desci as escadas, logo cheguei na sala onde Kyro estava me esperando e sentei-me ao lado dele.

— E então, como minha noiva está? — Ele virou-se para mim e sorriu.

— Você veio até aqui só para saber como eu estou? — Eu perguntei, erguendo uma sobrancelha, percebendo tarde demais como estava sendo rude.

— Não. Quer dizer, eu só...

— Você só...?

Ele ia continuar, mas Sebastian se aproximou e estendeu-lhe uma xícara de chá.

— Obrigado Sebastian.

— Desejam algo mais? — Sebastian perguntou, logo se afastando quando eu fiz que não com a cabeça.

— Você estava dizendo... — disse, tentando retomar o assunto que Kyro havia começado.

— Ah sim, vai ter um baile de máscaras no próximo sábado e, como você é minha noiva, falaram para eu vir lhe chamar para ir comigo.

— Tudo bem. É só isso? — perguntei ríspidamente.

— Então posso passar aqui às sete?

— Faça como quiser. — eu levantei-me e passei a mão em meu vestido, desamassando-o — Agora se me dá licença, estou me sentindo um pouco indisposta. Sebastian!

— Sim, my lady? — Sebastian entrou novamente na sala.

— Acompanhe Kyro até a porta.

Eu saí da sala e subi para meu quarto, dessa vez só o som dos meus passos se fez presente. Joguei-me em minha cama e fiquei encarando o teto. A verdade é que eu estava preocupada com o que vinha acontecendo, isso de esquecer as coisas. Será que um dia o rosto dos meus pais me seria igualmente estranho como o do meu avô? Seus rostos foram tudo o que me sobrara deles, e seja lá o que estivesse me causando todo esse esquecimento eu não ia permitir que me tirasse meus pais. Ah, isso não.

Escuto a porta do meu quarto se abrir e logo vejo Marye entrando no quarto. Assim que me viu, ela, desajeitadamente, fez uma reverencia.

— Desculpe, my lady. Não sabia que a senhorita estava aqui... Se soubesse eu não teria entrado assim e... — Ela explicou-se apressadamente, atropelando as palavras.

— Não se preocupe, é que eu não estou me sentindo muito bem e...

— Ah! My lady está passando mal?! Quer que eu faça algo?!

Marye se aproximou rapidamente e começou a me examinar. Ela puxou as mangas de meu vestido para ver meus braços e ficou esfregando enquanto apertava minhas bochechas. Eu já não estava aguentando mais quando vi Sebastian entrar no quarto e sorrir.

— Marye, vá ajudar Finny com a cozinha. Deixe que eu cuido da Luna.

Marye fez uma reverencia e saiu, eu aproveitei para ajeitar meu vestido e verificar se minhas bochechas ainda estavam no lugar depois de toda aquela apertação... digamos que Marye era um pouco agitada demais. De repente, eu senti a mão de Sebastian em meu rosto, o toque frio contrapondo todo o ardor. Ele começou a fazer uma massagem em minhas bochechas, algo dócil demais até para ele, mas eu não estava reclamando. Sem que eu me desse conta, nossos rostos foram se aproximando cada vez mais. Nossos lábios já estavam quase se tocando quando eu consegui escapar de seus dedos e empurrá-lo para longe.

— O que pensa que está fazendo?! — gritei, enquanto me afastava ainda mais de Sebastian

— Eu só estava fazendo uma massagem...My lady.

Ele me olhou sorrindo, aquele sorriso de quem estava mentindo, não vai admitir e ainda vai conseguir te fazer acreditar que o errado é você. Ah, como eu odiava aquele sorriso...

— Você sabe muito bem que esse sorriso não funciona comigo! — gritei novamente, dessa vez apenas me virei e respirei fundo antes de continuar — Deixe-me sozinha, não estou me sentindo muito bem e preciso de um tempo para descansar.

Sebastian fez uma reverencia e saiu.

Ultimamente as atitudes dele me deixavam confusa, ainda mais se eu tentasse pensar sobre elas e decifrá-las. Eu não gostava de estar confusa. De me sentir tola e incapaz. Às vezes, as coisas poderiam só ser mais simples, mais fáceis de se decifrar...

Eu olhei para a janela como se todas as respostas de que preciso estivessem lá fora. Ainda conseguia enxergar a carruagem de Kyro partindo em direção ao Norte. Não consigo acreditar que sou noiva... Ainda mais de uma pessoa como ele.

Quando eu era pequena, acreditava que esse casamento era algo de conto de fadas, algo maravilhoso... Mas agora que ele está chegando, e eu vejo que é real, não sei o que fazer. Talvez eu deva fugir para bem longe e recomeçar minha vida... Não sei...

Sacudi a cabeça espantando aquela ideia.

Ultimamente eu vinha pensando em coisas muito estranhas... e impossíveis.

Eu me joguei na cama e fiquei encarando o teto. Depois de algum tempo, minhas pálpebras foram ficando cada vez mais pesadas e acabei dormindo.

Devorar-te-ei: memórias póstumas de um amorOnde histórias criam vida. Descubra agora