A alma do necromante

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O dia em toda Bhram se conta em vinte e sete horas e naquele momento eram 16:00 horas. Felipe ficara pensativo mais uma vez, por mais que fosse uma folga, a exaustão de sua mente era maior do que quando ele ajudava Carol a encontrar crianças perdidas.
Felipe era facilmente levado pelos seus impulsos instintivos mas mesmo ele, naquele dia estava pensativo, perfeito no âmago de suas ideias, dúvidas e principalmente lembranças. Lembrava de receber a missão de trazer de volta a caixa que continha o artefato de Áries na batalha do castelo, onde a caixa nunca mais foi vista, lembrava de Ártemis na noite anterior e uma resposta óbvia parecia não ser plausível, o ginete não achava a conclusão pois seu inconsciente não queria achar, como uma cortina fechada para seus olhos por sua própria vontade se manifestando apenas por sua vontade.
Karine estava voltando para a escola mágica metronita construída por Sora, o evento de inauguração do distrito se aproximava, todos estavam ansiosos e decidiram chegar antes do dia marcado, saindo imediatamente.
Marcos, Karine, Carol, Amanda e Felipe se uniram e alugaram uma carona, um transporte mágico comum em Metrón nessa época, a invenção de Sora montava um aconchegante banco encima de uma plataforma flutuante movida por sigilos, selos e alguma montaria.
A carona em questão era movida por um felino peculiar cuja expressão era "comum de mais" para alguém daquele tamanho na família dos felinos.
Era hora de partir e a CasaGrande ficou nas mãos da vice diretora.

Enquanto no tal distrito, ainda sem numeração ou clã, Ártemis estava ao lado de suas raposas em um lugar totalmente fechado frio e úmido, porém grande e arejado onde uma cachoeira passava através de algas bioluminescentes que davam uma luminosidade àquele lugar.
Ela observava enquanto as raposas fátuo corriam ao vento e levemente para todas as direções como se o conceito de chão não fosse real para elas, não era realmente um voo mas um andar pelo vento. Ao seu lado estava a pessoa das inúmeras almas, ainda com a consciência de Lucas, ele se vestia como Anastácio com a capa marrom e não deixava de lado o bastão onde a raposa presa vivia.
- Elas são tão belas... - Comentou Lucas.- Mesmo tendo a alma dele presa a mim eu não posso compreender nem processar que alguém possa ter sido tão cruel a ponto de prender uma nesse lampião.
- Não há como entender por que as pessoas fazem o que fazem.- Retrucou Ártemis.- Mas esse cara, o necromante, tem mais sobre ele do que o Sora nos contou. Então é melhor a gente continuar o que estávamos fazendo, não só por você mas por causa daquela história de okragnar. Pode ser só mais um conto, mas um dos homens mais inteligentes e poderosos do mundo está com medo.
- Eu sei... - Falava Lucas se deitando em uma mesa de rocha.- Só estou com medo tentando não pensar na cirurgia que vai fazer em mim.
- Só tenta relaxar, eu só fiz isso mas raposas até hoje então preciso que você fique tão quieto quanto elas.
Lucas tinha medo do que estava por vir, mas encarar as raposas no céu o fez perceber que o desejo de se libertar e voltar para casa era maior do que o medo de ficar preso para sempre com um necromante, ele fechou os olhos sabendo que mesmo se a cirurgia falhasse e ele morresse de vez, isso também seria uma forma de libertação.
Karine então pegou um objeto pontiagudo de um pilar de rocha e ele se prendeu em seu antebraço. Ela se aproximou do rapaz e tocou em seu peito com a tal ferramenta cirúrgica cuja aparência lembrava uma luva de rocha com três dedos pontiagudos.
- Está pronto? - Perguntou ela quando linhas azuis percorreram a ferramenta em seu braço.
- Estou. - Então ele puxou um fôlego e antes de terminar já não se via no mesmo lugar, não havia chão ou paredes, parecia estar no vácuo do espaço, seu caminho até ali fora mais rápido que um piscar de olhos e completamente indolor, o contrário do que uma cirurgia sem anestesia pudesse parecer.
Ele olhou se sentiu solitário por um instante, por não ver sequer uma luz, foi quando sentiu alguém segurar sua mão. Era Ártemis, com isso percebeu que não estava no corpo de Anastácio, olhou e viu que se tratava do seu próprio interior onde caminhava solitário de mãos dadas com a senhora das raposas.
- Onde nós estamos? - Perguntou Lucas.
- É complicado mas simplificado, são as camadas da sua mente, alma e espírito. Nós estamos aqui para libertar todas as pessoas presas a você.
- Ok, não quero pensar em como os nossos corpos físicos estão agora.
- É chamado chave de Oksac. Histórias dizem que antes de Metrón, os antigos pavos dominavam o continente, de uma forma totalmente estranha, mas eles tinham templos subterrâneos onde usavam as chaves de Oksac para encontrar e capturar almas para um ritual bizarro de renascimento. - Explicava Ártemis com a mão apontando para o lado, sem motivo aparente.- O Sora achou que isso seria a melhor forma de te devolver ao seu corpo.
- Estou me sentindo frio. O que está fazendo?
- Tentando encontrar falhas na sua alma, assim nós vamos ver... achei!
Karine então tocando no ombro de Lucas, o conduziu à uma direção onde ele pôde ver uma porta se aproximar, ambos passaram por ela e se encontraram em uma sala branca onde muitas pessoas estavam acorrentadas, uma delas era o Anastácio e ele não parecia tão diferente dos outros prisioneiros, todos vertiam a mesma roupa leve como a de um hospital, todos acorrentados com os pés juntos e as mãos afastadas do corpo como uma crucificação mórbida, onde as correntes de aço preto os prendiam tanto ao ar quanto uns nos outros.
- Eu não esperava que você tivesse sacrificado alguém. Mas é bom saber que você está aprendendo como usar meus poderes, logo ficará como eu. - Comentou Anastácio imediatamente ao ver Lucas e Ártemis. Só então Lucas percebeu que nesse espaço havia se manifestado com a própria aparência, os olhos claros, pele branca e cabelo preto fosco exatamente como lembrava de si mesmo.
- Ela não é sacrifício, ela veio para soltar as almas que você aprisionou. - Respondeu Lucas tocando o próprio rosto ainda desacreditado de que ali podia ser ele mesmo.
Anastácio então olhou o braço de Ártemis e enxergou a chave.
- Ah uma chave de Oksac, impressionante conseguirem encontrar a única coisa que pode me matar definitivamente. Mas vai por mim não é uma boa ideia, se me matarem um grande mal vai se libertar.
- Acha que vamos dar ouvidos a isso?- Retrucou Ártemis.- Você é só um parasita encontrando artimanhas pra se agarrar à própria vida.
- Então por que ainda não me matou? Ah eu lembro de você, a mulher das raposas, suponho que ainda não descobriu como libertar ela.
- Nos fale logo! Sabe que vai morrer mesmo se não disser.
- Não existe modo algum que não seja a minha morte, mas você não quer isso. Existe algo pior do que os deuses do pecado para se preocupar.
- Você é patético...
- Eu não entendo, vocês vieram até aqui, mas só estão olhando para mim, sem nada que eu queira, apenas com uma ameaça e acham que vou dar o que querem. Sabe podem me matar logo, ou podem usar a chave de Oksac em mim e entrar ainda mais fundo nesse selo para verem do que eu estou falando.
- Não vamos cair nessa...- Falou Lucas antes de ver Ártemis cravar a chave no peito do necromante, mesmo sendo um magista experiente apesar da pouca idade, Lucas não havia contemplado tamanho número de selos de uma só vez com um único objetivo, a alma de Anastácio estava literalmente aberta e o menino não pôde deixar de pensar que aquele estado bizarro de lama de carne em que Anastácio havia se tornado era exatamente como seu corpo se parecia do lado de fora. Ártemis tocou o ombro de Lucas "ele não está blefando" ela afirmou puxando-os para um lugar ainda mais fundo dentro do selo que prendia os sacrifícios de Anastácio.
Muitas vozes gritavam e choravam naquele espaço infinito e vazio uma mente perturbada por anos ou décadas de mortes e cujos sentimentos e impulsos ficavam sempre reprimidos se manifestando naquele perturbado som que os aterrorizava como se estivessem no próprio inferno.
Antes de permitir que Lucas falasse ou reagisse de qualquer forma Ártemis estava procurando algo como antes a falha monumental na alma cuja causa era o selo de sacrifício das Anastácias, ainda em silêncio ela os levou a mais uma porta.
Depois da porta havia um paredão lembrando mármore preto onde onde uma série de correntes infinitamente maior do que a quantidade de correntes de antes prendia uma mulher de pele roxa e cabelos brancos em uma montanha de ossos que cheirava a carniça e cinzas, essa mulher era muito velha e o número de correntes era tamanho que suas roupas pareciam feiras de correntes, como um vestido de metal feito para torturar a pessoa dentro dele, tão pesado e tão medonho quanto os olhos dessa mulher que tentava se soltar por incessantes vezes fazendo um barulho perturbador e infernal, barulho que Lucas reconheceu como a fonte de suas enxaquecas e dores de cabeça frequentes desde que acordara com o corpo de Anastácio.
- Eu conheço você!- Disse ela olhando para Lucas fixamente, um sorriso demoníaco com poucos dentes foi o que a acompanhou logo depois de parar de lutar contra a sua prisão.
- Eu não conheço seu rosto mas seus gritos não parecem novidade.- Respondeu ele fechando a cara.
- Sim eu gritei na sua cabeça, faz algum tempo que meu pupilo Kazuki te adicionou à nossa casa, como você chegou tão profundamente dentro da alma dele?
- Quem é Kazuki?- Perguntou Ártemis olhando fixamente aquela figura medonha, havia uma vontade em suas coxas de correr dali, tamanho era seu terror, o peito da mulher não esqueceria tal sensação, como se uma faca de gelo estivesse penetrando na sua veia mais escondida. Mas sua força de vontade não a deixava recuar.
- Era o nome do Anastácio, quando ele era vivo, antes de ser consumido por essa bruxa da floresta.- Respondeu Lucas.
- Então era de você que ele estava falando? Uma bruxa necromante... bom isso não importa mais.-Respondeu Ártemis encarando Anastácia, instintivamente ela usou a função menos reconhecida da chave.
Cravou a chave de Oksac no peito da bruxa Anastácia, mas dessa vez não foi para entrar na alma do alvo, Ártemis olhou profundamente nos olhos de Anastácia enquanto a manifestação de sua alma começava a criar rachaduras por todo o corpo.
Anastácia parecia cada vez mais instável de modo que as rachaduras ficaram maiores e mais evidentes brilhando em um vermelho escarlate lembrando uma bomba prestes a explodir e levar esse ser para o completo esquecimento de pólvora e enxofre.
- Você não tem ideia do que fez garota!- Afirmou Anastácia em um último riso antes de explodir completamente dando fim à existência.
- Pronto, nenhum mal assustador no mundo agora, podemos matar ele.- Afirmou Ártemis tendo a certeza de que era da bruxa que o Anastácio falara há pouco. Ela havia chegado à conclusão de que agora o necromante lhe daria a resposta que procurava ou que ao menos Anastácia não poderia mais se libertar se estivesse morta.
- Não, tem algo de errado. Eu senti alguma coisa.- Retrucou Lucas, o espaço aparentemente vazio começou a se quebrar.- Como essa chave funciona?
- É um apetrecho que manipula a alma, eu destruí a alma dela, por isso pode matar o Anastácio, é capaz de destruir ou danificar uma alma como eu fiz com ela agora.
Uma quebra no espaço ao seu redor fez ambos voltarem à sala onde Kazuki e os outros estavam.
- O que vocês fizeram?- Perguntou Kazuki agora com espanto no olhar, algo que nunca acontecia ao necromante sem emoções, ele parecia apavorado como se tudo o que reprimisse durante todos os momentos de sua vida viesse a tona de uma só vez.
- Destruímos a alma dela.- Respondeu Ártemis.
- Que merda!- Gritou ele, espantando-os.- Vocês não deviam ter feito isso.
- Agora é sua vez.- Dizia Ártemis mais uma vez avançando com a intenção de destruir a alma de Kazuki também. Mas ela parou ao ver que três círculos repletos de selos surgiram ao redor dele.
- Eu sabia que tínhamos feito merda... eu tô sentindo uma coisa no meu peito, no meu corpo físico.- Comentou Lucas quando uma força os picava para fora, mesmo tentando resistir era como tentar negar a gravidade, impossível a não ser que você seja uma raposa fátuo.
- A alma dela era um selo, o último que restava, por isso eu a mantinha dentro de mim e não junto com os sacrifícios.
- E só agora você decide nos falar? O que foi que eu soltei?- Retrucou Ártemis.
- Kibushin, a rainha do inferno, ela é a pior abominação que vocês poderiam esperar.
- Há uma forma de matar ela?- Perguntou Ártemis, logo antes de perceber que Kazuki começava a rir assustadoramente.
- Eu juntei quatorze almas só para manter o selo Intacto e eu juntaria quantas fossem necessárias até não poder mais para evitar que ela escapasse.- Berrou loucamente com os olhos arregalados de terror contrariando o sorriso sádico e cheio de saliva  que ele não podia conter mostrando o ponto mais alto que um louco pode chegar no ápice de sua insanidade.
- Para com essa enrolação e diz logo!
- As Anastácias tinham selos em todas, cada vez que alguma morria os selos se quebravam, agora vocês quebraram o último e essa coisa não é algo mortal, enquanto eu tivesse a Anastácia presa dentro da minha alma, o selo não podia ser rompido. Agora vocês destruíram toda Bhram e declararam guerra ao inferno, os deuses virão e o zodíaco se libertará. Eu era o único que não deixava essa merda toda acontecer.
- Vamos sair daqui.- Disse Lucas tentando se segurar em um chão imaginário sem sucesso.- Com essa chave ficou óbvio que nós podemos encontrar a forma de soltar a raposa, mas não vamos conseguir fazer isso se estivermos mortos. Nos leve para fora e voltaremos aqui novamente.
Ártemis apenas concordou e se soltou indo a favor da força que lhes jogava para fora.
Ao abrir os olhos no plano físico Lucas olhou para cima e viu um buraco acima do lugar onde estavam. Uma gigantesca esfera repleta de marcas escuras e uma bruma preta escurecia o céu. Transformando aquele pós meio-dia em uma noite completa.
- O que nós fizemos?- Perguntou Ártemis observando que as raposas fátuo, apesar de fisicamente bem, se escondiam pelas paredes.
- Não sei mas vamos concertar e informar o Sora.- Respondeu Lucas se erguendo e com uma previsível decepção ao recordar que estava no corpo de Anastácio.

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