Capítulo 1

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  • Dedicated to Denise Muniz
                                    

                                 UM

ESTAVAM TODOS NAQUELA SINUOSA FILA, debaixo do sol que parecia ultrapassar os 50 graus. O chão estava quente como o carvão que arde em brasa na velha churrasqueira aos finais de semana no subúrbio do Rio. Lá vinha eu caminhando como de costume após saltar do ônibus, não mais abarrotado de pessoas como quando entrei do outro lado da cidade. Foi ali que tudo começou, naquela escaldante terça-feira do mês de Setembro de 2014. A minha passada, além de cansada, era lenta e meio desorientada, fatores desencadeados pelo enorme calor e abalo psicológico por qual tinha passado na noite anterior.

Aquele dia não tinha começado muito bem para mim. No trajeto eu vinha lendo vorazmente uma obra bastante conceituada do escritor afegão Khaled Housseini que eu tinha conhecido – não pessoalmente, é claro – àquela semana. Por alguns instantes eu me encontrei dentro daquela estória que vinha lendo. Encontrei-me em fragmentos daquela estória afegã que tinha alcançado alguns recordes de vendas.

Só de olhar para cada rosto naquela fila sinuosa e organizada apenas por uma espécie de corda, dessas de nylon zebrada em preto e branco que estavam amarradas em alguns cones pretos de plástico, percebia-se o sofrimento – e o fedor – daquela gente. A calçada estava totalmente ocupada. Não sobrava sequer um metro de raio a volta de qualquer corpo para que se pudesse caminhar sem levar duros encontrões ou, violentas baforadas no rosto, provenientes de cigarros fedorentos contrabandeados do Paraguai.

Percebi que tinham dezenas de pessoas com retalhos de lonas esticadas ao chão, dessas de cor azul que cobrem a maioria das barracas ambulantes espalhadas pela cidade. Lembrei-me dos domingos de verão no Parque Imperial, quando eu e minha família fazíamos piqueniques e brincávamos em volta da toalha – que era um lençol usado – com bolo, biscoitos e duas garrafas de guaraná ou suco de laranja. Nessas lonas adormecidas e enrugadas estavam algumas dezenas de quinquilharias exposta para venda – ou para troca, que fosse, pois, isso com certeza não era da minha importância e agrado. Dessas muambas pude visualizar alguns carregadores de celulares usados; revistas de economia da década passada; fitas vhs; pentes capilares; vestuários de ambos os sexos que mais pareciam panos de chão de tão velhos e sujos; vinis e muitas outras coisas que não me dei ao trabalho de levar em minha memória, já sabendo que tudo aquilo não tinha praticamente nenhum valor atribuído, ao menos para mim não.

Em continuidade ao comércio de materiais supérfluos se iniciava a enorme e barulhenta fila. Eram muitas faces, muitas miseráveis faces famintas. Todo esse aglomerado de pessoas esperavam ansiosamente para o que poderia ser – e tenho quase cem por cento de certeza que seria – a sua única refeição daquele dia ensolarado e sem muitas outras esperanças.

Não pude contar ao certo – e nem seria bom mesmo passar por ali fitando àquelas pessoas – quantos mais ou menos estavam ali feito esqueletos vivos na espera da liberação de entrada, que era determinada por uma voz rouca e muito mal humorada pelo que pude superficialmente notar. De acordo com minha experiência espacial adquirida no curso de arquitetura e por sempre ter estado aos finais de todas as filas na qual já estive contido – se essas fossem organizadas pela estatura, bastante elevada em mim – eu imaginei no mínimo umas trezentas pessoas, não menos do que isso.

Eram pessoas de todos os tipos; raças; crenças e idades. Muitos eram moradores de rua; outros não. Essa mistura de pessoas suadas e sem nenhum tipo de preocupação estética e visual. Estavam mal vestidas e com os cabelos desarrumados além dos homens numa maioria estarem com suas barbas por fazer.

Nessa minha analítica passagem paralelamente à fila algumas pessoas me chamaram à atenção e delas eu não me esqueço até hoje. Lembro-me de um homem que segurava em suas mãos um buque de flores – pareciam ser gérberas e palmas, dessas que se vendem nas portas dos cemitérios – e um terno cinza chumbo, amarrotado e com cara de estar sendo usado por muitos anos de tão velho. Carregava também debaixo de seu braço esquerdo um livro, um livro de capa preta e de espessura média que não pude perceber o título – infelizmente – mas deduzi que fosse uma bíblia, já que muitos evangélicos usam ternos para toda e qualquer casualidade. A fila que parecia ser um calvário onde centenas de pessoas de face faminta esperavam, debaixo de uma cobertura galvanizada escaldante, para aquele senhor parecia ser uma sala de cinema ou teatro em dias de estreia, tamanha interação e satisfação que o sorriso dele traduzia.

Sempre haverá esperançasWhere stories live. Discover now