O ROSTO DO MEU PAI

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Atenção: a história a seguir é verídica, e pode conter gatilhos emocionais

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Atenção: a história a seguir é verídica, e pode conter gatilhos emocionais.

Boa leitura!

Eu não sei exatamente como começar a contar essa história. Resolvi que a melhor maneira seria juntando alguns cacos esparsos da infância e tentar formar um todo coerente que possa retratar melhor o que aconteceu.

Sempre tive uma boa memória. Eu sou aquela pessoa a quem as outras recorrem quando precisam lembrar de algo.

O marido, quando precisa lembrar onde está a carteira. O filho, quando esquece onde guardou as apostilas. O cunhado pergunta sobre aquele conteúdo de português lá da década retrasada. Oitava série? É, por aí. O tempo passou depressa demais e eu, fui retendo seus detalhes, desde os mais fortuitos até os mais graves.

A minha memória armazena cuidadosamente tudo. Tudo.

Por exemplo, o rosto do meu pai.

Não, o meu pai não morreu. O meu pai está vivo, lúcido e trabalhando. Velho. Vivo.

A minha memória lembra do rosto do meu pai em diferentes épocas: quando eu nasci, ele estava com 35, a barba fechada, e o sorriso genuíno e onipresente. Aos 45, já havia fios brancos em sua densa cabeleira. Aos 55, a barba já havia sido retirada de seu layout costumeiro, restando apenas o bigode - grisalho. Hoje, ele tem 70 e seus cabelos estão quase completamente brancos, os dorsos das mãos sarapintados de manchas de sol. O sorriso permanece o mesmo, aquele sorriso com os lábios, com os olhos, com o rosto todo.

O rosto do meu pai.

O meu pai é o tipo de pessoa que passa por você e sorri. Ele jamais deixa de sorrir. Sorri e, às vezes, faz algum comentário bacana, solta uma piada, ou puxa algum assunto corriqueiro - o governo, a escola, meu trabalho, meus irmãos. Os netos. A fazenda, as vacas. A chuva que não vem, a grama que não cresce. Ou que a chuva vem, e ele está feliz porque gosta de chuva. Essas coisas. A voz mansa e pausada torna qualquer assunto agradável. Aquela voz baixinha intercalada com os goles da cuia de chimarrão, quebrando sem violência o silêncio das madrugadas.

Um rosto agradável, o rosto do meu pai.

Meu pai nasceu e cresceu em ambiente rural. Se casou com minha mãe, e criaram a mim e a meus irmãos, com suas raízes bem fincadas no chão de terra batida com cheiro bovino.

Para melhor acomodar a família que formaram, ele e mamãe ergueram, no meio de uma clareira que abriram no meio do mato, um casarão de madeira (onde moram até hoje). Respirando o ar frio e úmido pela proximidade do rio, eles serraram madeira com o traçador e fabricaram vigotas, esteios, tábuas largas e finas; colunas, andaimes. Ergueram a casa, telharam, dividiram. Algo incomum naquela época: azulejaram o piso. Tudo isso sem nenhum profissional adicional. Eles foram os arquitetos, os engenheiros e os pedreiros dessa fundação.

A casa ficou enorme, bonita e aconchegante. Ainda é.

O rosto do meu pai, mesmo marcado pelas intempéries do tempo e da vida, permanecia (e permanece) sorridente. Jamais eu vi meu pai com o semblante fechado.

Exceto por aquele dia.

Eu devia ter por volta dos nove anos.

Como filha temporã da casa, meus divertimentos eram solitários. Quando muito, brincava com os cachorros ou gatos, mas a frequência era a leitura de gibis e revistas, que meu pai comprava aos montes.

Naquele dia, eu estava sentada em um pequeno degrau que dava para o longo corredor que ia casa adentro. Nesse corredor, estavam os quartos de meus pais (à esquerda de quem entra), o meu quarto e o de minha irmã (à direita, os dois lado a lado). O corredor era escuro e desembocava na sala, onde, ao fundo, ficava o quarto do meu irmão.

Eu estava sentada no pequeno degrau que ligava a cozinha ao corredor, cercada de gibis e revistas, que folheava e lia distraidamente. Os azulejos eram (aliás, ainda são) os mesmos. Eles foram se afrouxando com o tempo e soltam pequenos estalidos quando se pisa nos lugares onde estão soltos. Ali, naquele degrau onde eu estava sentada, havia dois deles que estavam assim: soltos. Me sentei no lado do degrau oposto a eles. E lia. Nem via o tempo passar.

Em um certo momento, meu pai entra pela porta da cozinha, vindo lá de fora. Me preparei para falar com ele, já antevendo seu sorriso e apostando comigo mesma qual assunto ele puxaria comigo dessa vez.

"O que você está lendo aí?"

"Já viu o bezerrinho da Mansinha? Ela pariu hoje".

Trivialidades.

Meu pai entrou, e eu imediatamente olhei para o rosto dele, preparando meu melhor sorriso para acolher o dele.

Mas meu sorriso morreu no meio do caminho ao ver sua expressão.

Semblante fechado, quase uma sombra em cima dos olhos. Expressão de raiva verdadeira e maciça. Entrou pisando duro, e nem fez caso de minha presença - se eu fosse um vaso ou uma cadeira, daria na mesma.

Me lembro disso como se tivesse presenciando o fato agora, neste momento.

Meu pai entrou e atravessou a cozinha, passando bem ao meu lado.

Sim, eu lembro vividamente dele subindo o degrauzinho, porque um de seus pés pisou exatamente em cima do azulejo solto, fazendo um CREC seco.

Esse barulho estala na minha mente até hoje, quando rememoro esse dia.

Meu pai subiu o degrau, entrou no quarto dele e trancou a porta (barulho de chave girando - trancou).

Trancou.

Achei aquilo estranho demais, e resolvi ficar por ali, esperando que ele saísse - na minha cabeça de criança, criaria coragem e perguntaria o que estava acontecendo.

Minha memória sempre foi boa, mas minha paciência para esperar sempre foi péssima. Por isso, eu me lembro que fiquei ali esperando por muito, muito tempo. Muito tempo mesmo.

Lá pelas tantas, minha mãe (que estivera no quintal, fazendo coisas de quintal) entrou na cozinha, certamente para preparar o almoço. Como ela já havia me visto ali horas atrás, estranhou eu estar fincada ali, ainda:

- Uai - ela disse - o que você tá fazendo, parada aí? Ficou todo esse tempo lendo?

- Tô esperando o papai - respondi.

- Ah, seu pai? Mas ele saiu cedo hoje e foi trabalhar naquela cerca, lá do outro lado - ela respondeu - nem sei se chega a tempo pro almoço.

Dito isso, ela subiu o degrau onde eu estava (crec) e entrou no quarto de casal.

A porta estava destrancada, e não tinha ninguém lá dentro.

Ninguém.

O ROSTO DO MEU PAI - Contos de terror e horror para todas as horasWhere stories live. Discover now