COBRA ELEFANTE

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Atenção: o conto a seguir tem sugestão de abuso sexual e descrição de cenas de violência gráfica

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Atenção: o conto a seguir tem sugestão de abuso sexual e descrição de cenas de violência gráfica

São 1:34 da madrugada.

Mesmo com a luz do poste não cumprindo seu papel com todo rigor necessário, eu consigo vislumbrar os ponteiros no relógio de pulso.

A luz do poste falhava, fazendo aquele barulho seco. Barulho de choque.

Meus saltos faziam um barulho no asfalto. Eu andava com pressa. Poderia tirá-los, mas a sensação do asfalto na sola dos pés é horrível, sei bem.

Eu andava muito descalça quando era criança, as solas grossas, as unhas faltando pedaços aqui e ali; agora, é diferente. Faz muito tempo que ando calçada, e as solas afinaram. A sensação do asfalto é desagradável.

Talvez até mais desagradável do que ouvir o barulho de pisadas nas pedras soltas, de passos logo atrás de mim. É um homem, eu sei. Eu sou capaz de ouvir a sua respiração pesada, de ansiedade pelo que pretende fazer. Eu sei o que ele pretende fazer, e apresso o passo. Agora, mesmo que quisesse tirar os sapatos, já não daria mais tempo.

Quase corro, e percebo que ele também acelera seus passos. Os saltos não me permitem ir mais além do que ele, e então, como uma piada de mau gosto, ele me ultrapassa e se posta à minha frente, um sorriso perverso e exultante no rosto, os olhos ensandecidos de cobiça me olhando como uma presa.

- Gostosa...

***

Acordo me sentindo levemente zonza, uma dor de cabeça miúda me incomodando lá das profundezas do hipotálamo. Talvez, se a luz do sol não tivesse invadido o quarto e atingido em cheio meu rosto, eu teria acordado ainda mais tarde. Já são dez horas da manhã, e a janela do meu quarto está sem cortinas.

Me sento na cama e resolvo que é tarde demais pra fazer café. Melhor fazer o almoço logo.

Olho para minhas mãos e fico alguns minutos contemplando meus dedos. O band-aid que cobre o ferimento do indicador direito está frouxo, tal como uma pele de cobra elefante.

A cobra elefante é um bicho lerdo e estranho, que vive no Vietnã e não suportaria o clima tropical do Brasil. Parece uma tromba de elefante, daí seu nome. Sua pele frouxa lembra as meias que os velhos usam no inverno, e que se acumulam no tornozelo com seus elásticos frouxos.

O meu band-aid também ficou frouxo, porque eu o molhei logo após colocá-lo. Frouxo igual pele de cobra elefante. Até a cor parece a de uma cobra elefante.

Me levanto, lavo o rosto, escovo os dentes. Faço descer uma Doralgina com a água da torneira da pia, e rumo para a cozinha.

Eu tenho fome, e vou preparar o almoço.

Já havia preparado uma mise-en-place antes de dormir.

Fatiei a cebola, descasquei o alho. Piquei a salsinha. Tem couve-de-bruxelas, também. Resolvi comprar, me disseram que é bom. Eu as deixo reservadas em uma travessa sobre o balcão, enquanto pego na geladeira a carne, que descansa em temperos dentro de uma bacia.

Os bifes foram cortados grossos, excelentes para serem preparados na chapa. Infelizmente, não disponho de uma serra profissional, de modo que tive que dar golpes de faca para poder cortar os ossos. É, eu gosto de obter os pedaços inteiros, para poder prepará-los conforme minha vontade do dia.

A borda serrilhada dos ossos são mais afiadas do que a minha faca, haja vista o talho que deram no meu dedo.

O velho fogão de seis bocas é uma herança da minha avó. Eu boto a chapa para esquentar sobre ele, pensando sobre os ensinamentos que a velha senhora me dava enquanto fazia pipocas ou preparava pimentões recheados.

"Você precisa andar sempre bonita, minha filha. Quem não se ajeita, por si se enjeita".

Daí eu ter desistido de andar descalça, sem maquiagem.

Daí a minha insistência em manter os saltos nos pés.

Daí a minha insistência em manter a minha casa o mais organizada possível, para que sua beleza e organização também me influenciasse a ser uma mulher bela e organizada.

Exceto pela cortina do meu quarto, que tive que arrancar - mas não tive outra alternativa.

Os filés exalam um cheiro gostoso quando os deposito sobre a chapa. Estão bem temperados, e meu estômago ronca.

Se pensarmos bem, o ronco é a linguagem universal do sofrimento.

O estômago ronca quando anseia por comida.

O aparelho respiratório ronca quando há obstáculo ao oxigênio.

Vamos supor que você dê uma porrada forte na cabeça de uma pessoa, a ponto do cérebro dela sair pra fora, mas mesmo assim ela ainda ficar viva e em coma: a língua se afrouxa dentro da boca e causa ronco.

Se você chutar o peito de uma pessoa até as suas costelas se quebrarem e perfurar seus pulmões, o sangue que afluir em sua garganta antes dela morrer também vai causar ronco.

Então, eu junto o ronco do meu estômago aos outros roncos que associo a sofrimento.

Na fase final da cocção, a gordura que se desprende dos filés estala e eu os viro, adicionando a cebola e a salsinha, tornando ainda mais agradável a sensação da fome. Fome pode ser desagradável se você não tiver o que comer, mas pode ser também o melhor tempero, se você tiver expectativas quanto a remediá-la.

O que é o meu caso, agora.

As couves-de-bruxelas são o último item a ser adicionado à receita, e logo após eu monto um belo prato, em que vou cortando tudo e mastigando bem devagar, deixando meu paladar apreciar tudo muito bem, antes de mandá-lo ao estômago.

Depois que terminar essa refeição, preciso limpar toda a sujeira que deixei pela casa enquanto preparava a mise-en-place. A cortina com os despojos, eu depositei na garagem, junto com o taco de madeira maciça. A cortina, eu iria jogar fora. O taco, acho válido dar uma lavada.

Lavo toda a louça e começo a me planejar para organizar tudo com cuidado. O band-aid, eu o retiro. O ferimento está limpo, e já não sangra mais.

Ahhh...

Na madrugada, a luz do poste falhava e fazia aquele barulho seco, barulho de choque.

Ele me alcançou e me chamou de gostosa.

Ele também é delicioso.

O ROSTO DO MEU PAI - Contos de terror e horror para todas as horasWhere stories live. Discover now