Capítulo 2: Esmalte de veneno

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       — Colocar veneno em um frasco bonito não faz dele mais tragável — protestei, na antecâmara do quarto de Neveah.

— Você será a Versada mor — salientou a mulher.

         Naquela noite, o verde profundo que Neveah usava lhe dava um aspecto austero. Não que precisasse disso, pois a Lorde Versada era em suma, esculpida em mármore, com pele dourada e imaculada. Os cabelos brancos haviam sido presos para trás, eram sua coroa e ela era a voz soberana na Torre Labirinto. E Qilian não era o acordo.

— Quero o que me prometeram.

— Receberá o que lhe foi dado. É uma Versada. Se tem sede no deserto, faça brotar água das pedras. — Sua mão pousou em meu ombro num ato tão maternal que só podia significar que estava enviando para imolação. "Não sou um cordeiro", queria gritar. — Você é capaz de conseguir até leite dessas pedras.

— Devaneios ensolarados só se mantêm à distância. Os principados do leste são um caos de sangue e pólvora. — Seis príncipes mortos, os Versados já chegaram a pavimentar com os próprios ossos o caminho de Qilian a Annebeck. Crianças imoladas por conta de uma lua, incluindo um duque. — Não vou correr para minha própria cova. Não vou servir em Qilian!

— Você serve a Ordem Versada. Devo lembrá-la que se contrariar a Ordem, a retaliação virá mais rápido do que é capaz de apagar uma vela?! — Ela ergueu meu pulso. A tatuagem prateada com o símbolo da ordem ainda doía onde foi colocada. — Seu tio não vai protegê-la caso quebre seus votos. E eles dizem que a partir de hoje você serve ao trono de Qilian, então cumprimente seu príncipe com um sorriso no rosto. Precisamos daquele principado, então faça o que for possível para mantê-lo.

        "Se largar a Ordem, me esqueça. Juro que não terá minha ajuda para nada". Meu tio havia dito, anos antes. "Tudo o que fiz e sacrifiquei foi por você, se é ingrata o bastante..."

— Quanto custou para me pôr de lado? — indaguei. Ela ainda não tinha me visto puta.

        Desviou o olhar. Culpada.

— Saiu caro, mas não para mim. Lamir de Qilian disse que prefere ser servido por mulheres e a princesa Lear pediu especificamente por Nymor.

— E por mim — retruquei.

— Nephir... aquele rato fofoqueiro. Vou deixá-lo a pão e água. — A senhora da Torre-Labirinto se empertigou. —Lembre-se que seu dever é servir.

— Não, a função de um versado é guiar. Posso não ser como os outros, posso não ter conquistado meu lugar, mas eu mereço isso. — Bati nas marcas em meu pulso. — Não vamos fingir que, o único motivo de Lamir ter me aceitado em Qilian, é ter o mesmo sobrenome que o novo Mestre Versado. Sou uma vantagem política. Meu tio coroou um cão e o novo príncipe colocou nele a coleira. Pagaria para ver... se não soubesse o resultado. Lamir tem fome demais para se contentar com esse equilíbrio frágil. Não vou servir ao homem que matou toda a família de seu antecessor.

       Neveah riu, colocando meu rostro entre suas mãos gentis.

— Não vai servir a um homem que te relegue as sombras. Mas já perguntou se não é o seu lugar? — Bastava. "Desgraçada". Meu sangue fervia quando me dirigi à porta. Sem lágrimas, só cacos de raiva. — Vissenia? Não concordei com sua entrada aqui, mas ainda pode crescer se agarrar sua chance. Como seu tio.

"Mas ele não sou eu".

§

          Sou Versada em artes ocultas. Por isso não acredito em milagres. "Mas conhece as histórias", havia um sussurrar profundo em minha mente. Tentando deslizar para fora.

         "Não é prosaico"? argumentou esse pensamento.

       "E longe de estar certo", retruquei. "É apenas isso, a minha vida"? Dor. Minha cabeça doía como pedras esmagadas. Castelos de areia sendo carregados pelo mar. "Não está certo".

       Minha boca se abriu. Nenhum som escapou.

       A tempestade era um mar sólido se aproximando do leste.

       Mesmo de olhos fechados, sentia o vento agitar as águas abaixo. A Torre Labirinto era, em suma, uma elevação negro-esverdeado que se erguia metros acima do nível do lago formado pelo rio Eleagno, cercada por muitos outros blocos de calcário esculpidos pelas ondas dos anos. Podia ouvi-las se quebrando cem metros abaixo. Depois de horas sentada na posição de lótus, era fácil esquecer onde se delimitava meu corpo e onde começava a pedra polida. Rocha mais antiga que eu, anterior a Ordem, um palácio que precedia qualquer rei.

       Não sentia meu corpo, mas tinha consciência da entrada de Galatheah. A moça parou na soleira da porta, apertando a madeira de ébano contra os dedos.

— O que é isso, Vissenia?

       Voz... onde estava? Antiga como a rocha, ela despertou.

— Disse que nenhum navio sairia hoje!

      Agitei a garrafa do vinho preparado pelos mestres.

— Agora sou uma Versada mor, posso beber quanto quiser. — Era desconfortável se apropriar novamente daquele corpo. Preferia continuar perdida nas ondas. Mas quando tentei me erguer, falhei miseravelmente. Deu por mim, bêbada, ainda que o vinho purpura ainda se agitasse no fundo do recipiente. Minha colega correu até mim. — Vou lhe fazer uma promessa, Theah, um ano. Um ano e estarei com o cabelo alvo como a Neve. A neve...

       Levantei de súbito. Mas voltei a sentar na falta de equilíbrio.

— Neve — repeti. Me aninhei contra os joelhos, sentindo as mãos frias. — Como a Lua de Neve... Não se atreva a sair, só estou descansando os olhos... Juro. Me ajuda a procurar... Não. Chame Nephir... Eu...

        Minha visão flutuava. As paredes eram líquidas e Galatheah se desmanchava em névoa leitosa. Então o azul me acorrentou, púrpura enraizando em meu sangue, branco e prata chuviscando no mundo, toda a realidade sob o prisma de um caleidoscópio.

— Acho que bebi demais — declarei por fim.

      Theah me colocou na cama e ficou ali sentada. Hesitando em ir e em ficar.

— Ela está nos punindo? Digo, se descobriu o que fizemos — franziu os lábios. — Nos punindo com nossos desejos.

       Tirei os únicos cachos brancos do rosto.

— Você não fez nada. E, se for o caso, Neveah tem mais paciência do que eu. Nos fez um favor em manter segredo. Aí,faremos ela se arrepender, amargamente. — Theah riu e me dei por satisfeita. Era um sorriso tímido e assustado. Não podia deixar transparecer a ideia que pelo menos eu, já havia sido envenenada.

        Foi o vestido, notei. Quando sai do banho na tarde da festa, meu vestido prateado estava sobre a cama mais arrumado do que devia. Ignorando esse detalhe, havia manuseado o tecido até que o esmalte púrpura de minhas unhas ficou branco. Larguei-o como uma praga; e foi quando roubei vinho e o vestido verde dos aposentos de Neveah.

        Deliberava se tocava fogo no lugar quando tive certeza que não foi minha mentora a responsável. Não contaria ao tio, mas se Neveah estivesse tentando se livrar de mim, não teria falhado. Muito menos de uma maneira tão... prosaica.

        Versados tinham maneiras melhores de se livrar de obstáculos e inimigos. 

Príncipe de BarroWhere stories live. Discover now