06 | Memórias Rubras

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#CaçandoVagalumes

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#CaçandoVagalumes

O costume de levantar antes do cantar do galo, perdurou mesmo após semanas na capital.

Na varanda, sob o vento gélido do fim do inverno, eu observava a iluminação escassa dos postes de luzes no breu da madrugada. As estrelas estavam cobertas por nuvens escuras, os sons altos de motores e buzinas foram, parcialmente, substituídos pelos ruídos das inúmeras fábricas espalhadas pela capital e a maioria dos humanos estavam adormecidos no aconchego de suas casas.

Beberiquei o líquido fumegante da caneca esquecida em meu colo e encarei o caderno aberto num desenho incompleto, com rabiscos disformes e sem qualquer cor, senão o branco pálido do papel e o preto envelhecido do grafite. Depositei o recipiente com chá quente sobre a mesa acoplada na parede, erguendo os pés na cadeira de bambu acolchoada, mudando de posição após longos minutos.

Eu odiava bloqueios de criatividade, porque nunca encontrei uma solução para eles.

Comecei a desenhar com pouco mais de sete anos. As lembranças são vagas, quase esquecidas na minha mente, entretanto, recordava-me com clareza das razões pelas quais decidi ser um artista: eu precisava esquecer a realidade e meu destino bordado em fios mágicos para não haver rupturas. Por conseguinte, quando a inspiração tocava meu âmago, eu me perdia entre os pincéis, lápis e cores vivas, tendo algo que pudesse ser denominado como meu.

Vovó sempre fôra uma aliada, deixando-me passar noites em claro contornando pinturas ou colorindo montanhas; cozinhava os melhores pães doces de toda a Ásia para que eu me alimentasse; carregava-me para cama quando eu adormecia sobre a mesa de jantar, entre livros e cadernos de arte; e, acima de tudo, nunca permitia o descaso com minhas obras, mesmo as críticas partindo de seu criador. Para a senhora Lee, cada toque, pincelada ou gota de tinta refletia minha essência, de tal modo, não haviam motivos para odiar meu trabalho por não serem como o planejado. Para a matriarca da tribo do Sul, estar satisfeito significava dar-se por vencido e plantar-se como uma árvore de raiz profunda, auto-impossibilitando de se mover para novos espaços; Satisfação era sinônimo de contentar-se com o que lhe foi oferecido e não buscar pelo seu merecido.

Ademais, vovó sempre elogiava meus desenhos e, graças a ela, eu passava a detestá-los menos. Entretanto, desde a sua morte, nenhum outro traço tornou-se uma pintura e eu ainda não estava satisfeito.

Encostei a cabeça na parede atrás de mim e encarei o céu escuro, sorrindo pequeno ao absorver a luz da lua, sentindo o dorso da mão direita formigar sob as tatuagens. Soltei o ar preso em meus pulmões vagarosamente, imaginando minha avó olhando-me junto dos deuses e guardiões, o bater rítmico da bengala no chão e a mesma mecha da franja azul atrás da orelha, reprovando meu esmorecimento e chamando-me de molenga.

Fechei os olhos, apertando os dentes com a intenção de afugentar a dor em meu peito, embora pudesse sentir meu coração ser dilacerado pelo animal selvagem e indomável, denominado como saudade. Empurrei o caderno de couro para longe, almejando o estraçalhar para que jamais pudesse ser recuperado, contudo, o restante de força que havia em mim, desperdiçou-se quando abracei meus joelhos e derramei lágrimas salgadas no tecido confortável do pijama.

Doces Poções • JJk+PJmWhere stories live. Discover now