38 - Filho do rei?

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Há algumas centenas de anos, Melfhira continuava sendo a mesma de hoje. Só que diferente. Governado pelos Elfos Negros, o lugar sobrevivia às custas de seu povo. Toda e qualquer forma vivente servia como adubo para o crescimento do reino, que germinava cada vez mais. Como um parasita, lhe sugando a vida.

Os elfos eram extremante habilidosos com recursos naturais, os que lhes possibilitou se tornarem ótimos artesãos, fabricantes de armas e manipuladores de elementos. Tudo se devia a supremacia do Elfos negros. Mas havia um custo.

Tudo nasce; tudo morre e tudo retorna.

Esse era o lema de tal civilização, guiada pelo poder dos seres que deixavam a vida. Sim, entre eles havia um tipo especial de elfo, que detinha poderes semelhantes ao de bruxas e feiticeiras. Entendiam de remédios, venenos e morte.

Os chamados Necromantes eram conhecidos pelas vestes escuras e devido a tal fama, a época de sua glória ganhou o nome da tonalidade que os representava.

Incrivelmente poderosos, detinham a maior parte do poder e com isso, comandavam segundo sua vontade. Com um nível hierárquico altamente civilizado, os mais fortes estavam no poder. E o rei deles era sem dúvidas o mais temido.

Mas com o passar do tempo, os moradores foram aprendendo outras formas de coexistir. A ligação com a natureza se tornou tão forte que podiam até mesmo entender os animais, sentir as conexões das raízes das plantas, conseguindo assim se comunicar com árvores, expandindo o domínio de Melfhira.

A beleza e a devastação andavam de mãos dadas. Até o reinado ruir.

O poder agora não estava apenas nas mãos dos grandes. Todo e qualquer elfo poderia aprender a colher flores e fazer um chá milagroso capaz de os impedir de ir parar numa cova.

Tal conhecimento não agradou o rei.

Se sentindo ameaçado, mandou construir barricadas mágicas em torno dos limites do reino, a fim de que fosse possível impedir a saída dos moradores e também a entrada de forasteiros que, até então, nunca foram bem vindos.

Diante da loucura do governante, o povo se viu obrigado a agir, virando seu principal inimigo. Com isto, houveram divisões entre os povos, deixando-os isolados de acordo com o tipo de magia que controlavam. Mas unidos e em maior grupo, conseguiram dizimar a grande parte dos Elfos Negros. Não sem causar grande derramamento de sangue.

Na batalha, o rei perdeu sua esposa. A rainha fora fatalmente atingida, dentro de seu próprio quarto, enquanto dormia. O que só serviu para aumentar a ira sob seu povo, enviando tropas para destruir qualquer um que se opusesse a sua forma de governo.

Ao lado de seu general, o Rei enviou seu soldado mais feroz, seu filho. Que detinha de tamanho poder que era respeitado por onde quer que passasse. Até mesmo mais que o próprio rei.

Porém, ao se ver causando tanta dor e sofrimento, derramando sangue inocente, o filho se voltou contra o próprio pai. Que a essa altura do campeonato, já havia obrigado uma jovem a casar-se consigo, tornando-a sua mais nova rainha.

O filho também sentia a dor de perder a primeira rainha, sua mãe. Mas jamais deixaria que o poder e a vingança lhe subissem a cabeça. Estava ciente de que o pai apenas estava colhendo o que plantou. E que não seria justo todo o reino sucumbir mediante sua loucura.

Certo dia, tomado pela coragem, o jovem decidiu enfrentar o pai. Contudo, o mesmo já desconfiara do comportamento do filho, que passava mais tempo ensinando as crianças pobres e famintas a cultivarem alimentos para consumo da própria família nos dias difíceis do que semeando almas para o reinado.

Quando tentou convencer o pai a parar com seus atos, o príncipe acabou sendo surpreendido com a ira e a soberba do pai, que lhe desferiu um golpe que teria sido mortal caso o tivesse acertado.

Mas não o acertou.

Ao invés do filho, o rei acabou cravando a espada no peito de seu próprio general, que se atirou na frente do jovem para protegê-lo. De olhos arregalados, o rapaz assistiu seu amigo, que lutou ao seu lado em tantas batalhas, lentamente deixar a vida. Em seus braços.

Naquele momento, jurou que não seria um reflexo de sua origem. De seu rei.

Enquanto lamentava a morte do general, não percebeu a aproximação do louco que um dia chamou de pai. Que avançou ferozmente para apunhalar o filho pelas costas. Cego pelo ódio, não percebeu que havia mais alguém na sala. Assim que ergueu a espada, fora atingindo pelas costas. Como havia planejado fazer. Se virou lentamente na direção de seu inimigo mas o rosto que viu, apenas serviu para fazê-lo entender que o quão errado estava.

Era a jovem que ele obrigou a casar-se.

Suas mãos tremiam, vendo o rei desfalecer. Seu coração palpitava, cheio de agonia e adrenalina. Havia finalmente se vingado por tudo que o insano a fizera passar. Ficou dias a espreita, esperando o momento oportuno para agir. Pensou também em eliminar o sangue de seu terrível marido mas ao presenciar tal cena, não pôde levantar sequer um dedo contra o príncipe. Sentiu que seu coração bom e puro não havia sido corrompido pela ganância do progenitor. Decidindo então não lhe desferir um único golpe sequer.

Ambos permaneceram imóveis. Ela, empunhando a espada no corpo caído do rei e ele, ainda segurando o general em seus braços, oferecendo conforto aos seus últimos minutos de vida. O que quebrou o transe fora o sussurro do homem, que já quase morrendo insistia em proferir uma frase, inaudível para os ouvidos humanos. Mas não para o elfo. Que olhava aterrorizado para o trono.

A rainha, vendo que o jovem sequer se mexeu ao ser ameaçado de morte, virou-se para descobrir o que prendia a atenção do rapaz a ponto de fazê-lo não se importar com a própria vida. Mas o que viu apenas serviu para lhe partir o coração que já estava deveras machucado.

Ali, atrás do trono, havia uma criança. Encolhida, tentando se esconder do terror que seus pequenos olhos presenciaram. Chorava em silêncio, incapaz de se mover.

Tanto a rainha quanto o príncipe sentiram a mesma dor no coração ao ouvir as últimas palavras do general. Que foram: "Filha, seja forte".

A pobre criança, ao ouvir a voz do pai, correu ao seu encontro. Os olhos do homem viram pela última vez o rostinho da menina, que agora estava em prantos.

Aquilo fora demais.

Ver uma inocente ser tornar órfã por causa de um rei soberbo e arrogante, que não mediu as consequências de seus atos. Enquanto a garota se agarrava ao corpo do pai morto, os dois únicos membros restantes da realeza se encaravam. Cientes do que aquele momento significava.

Precisavam seguir em frente. Reconstruir o reino que estava a beira da devastação. Restaurar a ordem e a dignidade daquelas pessoas. E garantir que mais nenhuma criança se tornasse órfã. E de uma forma tão brutal quanto aquela.

Percebendo que estava sozinha no mundo, a criança chorou ainda mais desesperadamente, se agarrando ao príncipe, que tentou de todas as formas acalmar aquela pobre alma que mesmo sendo tão inocente era também tão sofrida.

- Eu vou cuidar de você, não chore. Você não está sozinha, minha pequena. - Ele disse, enquanto a abraçava.

A rainha compreendeu que havia feito o certo. O príncipe não era como o pai. Percebeu que juntos, talvez, eles pudessem reerguer Melfhira. E começariam com aquela criança.

- Venha minha querida... - Ela disse, abrindo os braços para acolher a garota enquanto o jovem afastava o corpo ainda quente de seus braços. - Me diga criança, qual o seu nome?

Com os olhinhos ainda cheios de lágrimas, a menina fitou a rainha, lhe olhando dentro da alma. E com uma voz fraca e falhada lhe respondeu:

- Cassandra.

Descendência: Coroa de Sangue e OssosWhere stories live. Discover now