O Hotel

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O calendário carregado no banco de passageiros marcava com um risco vermelho firme o dia 13 de maio. Pelo caminho, as flores desabrochadas e vibrantes reafirmavam que a primavera ainda resistia em trazer cor ao caminho tão solitário. As janelas fechadas não deixavam que a brisa fresca entrasse e, do lado de dentro, tudo era silêncio, interrompido apenas pelo chiar aleatório do rádio que, vez ou outra, pensava ter encontrado um sinal ao qual se agarrar.

Não passava de uma da tarde quando Kara Danvers cruzou decididamente o limite que separava a bela Califórnia do triste Arizona. Foi assim que ela jurou para si ter deixado todos os seus fantasmas para trás.

Mas os nossos fantasmas nunca nos deixam, não verdadeiramente. E o passado é sempre uma sombra rastejante entre nossas pernas.

Em seu banco de trás, também vazio de passageiros, ela carregava as poucas malas que possuía. As duas bolsas eram de couro antigo e surrado, mas ainda boas o bastante para sustentar suas constantes viagens. Ela pulou de cidade em cidade ao longo de muitos anos, jamais encontrando um paradeiro onde realmente se sentisse acolhida. O tempo mais longo em que esteve em um único lugar foi durante a faculdade, quando Kara ainda tinha esperanças de construir um bom futuro. Foram anos lutando por aquela bolsa de estudos e dando tudo de si para ser aprovada. E conseguiu. Comemorou sua vitória em uma lanchonete vazia, assoprando a fumaça de seu café enquanto imaginava uma pequena vela em felicitação.

No entanto, essa pequena vitória acabara por se tornar distante demais para ser lembrada ― assim como o futuro por ela pretendido. Existiu em Kara, há muito tempo, o desejo insaciável de buscar pela verdade. Leu seu primeiro jornal aos nove anos, na terceira escola em que foi matriculada naquele ano. Era essa a parte mais difícil de viver em abrigos, pensava. As mudanças aconteciam rapidamente e logo seus amigos eram deixados para trás. Em todos os lares em que viveu até a maioridade, foram poucos o que esteve por mais de um ou dois anos. Quando chegou aos dez, sua sentença já estava assinada. Estava velha demais para ser adotada, velha demais para sequer ter esperanças quando um casal sorridente entrava pela porta, cheios de promessas em seus olhos.
Essas promessas não cabiam nas roupas surradas que vestia. Mais de uma vez, ela ouviu o lamentar: "se ao menos fosse mais nova".

A pequena Kara Danvers corria para o quarto que não era seu, para acama que não era sua, agarrava-se ao travesseiro, também emprestado, e chorava por toda a tarde. Por vezes, durante a longa noite. Perguntava-se, incansavelmente, por onde andavam todos aqueles casais que lamentavam por sua idade ultrapassada quando ela era pequena e estava, mais do que nunca, disponível. Aonde estavam os olhares esperançosos e as promessas quando ela mesma ainda ansiava por um vislumbre de esperança.

Essa criança morreu dentro de si, tão logo quanto morreu aos olhos dos futuros papais.

Contudo, a pequena Danvers corria até a biblioteca de todas as novas escolas, ansiosa pelos jornais já velhos que, para ela, eram novos. Aos olhos infantis e inexperientes, toda notícia era uma nova verdade, fresca e pomposa. Se desse sorte, uma vez ou outra encontrava as palavras-cruzadas ainda em branco, ou com apenas uma letra ou outra rabiscadas. Aqueles eram dias gloriosos.

Dias que logo tornaram-se cinzentos, também.

Quando Kara, já adulta e liberta das amarras da infância, jurou não ter mais nada roubado de si, ela foi passada para trás. A oportunidade pela qual lutara tão insistentemente, aquela que custou-lhe mais de uma noite de sono, todo o esforço de anos em que se humilhou como uma pobre secretária... Perdidos. A vaga de repórter tão ambicionada passada a frente, a cadeira lustrosa garantida ao filho do chefe cujo currículo em branco espelhava seu próprio intelecto.

Kara Danvers estava exausta demais. Pronta para desistir.

Aliás, do que desistiria, afinal?

Do banco ao seu lado, bem abaixo do calendário riscado, um volume de Nietzsche escorregou, correndo para o tapete. Sem frear seu ritmo e deixando apenas uma mão para o controle do volante, ela abaixou-se para pegá-lo. A capa amarelada trazia inúmeras marcas antigas que nem mesmo Kara imaginava a origem. Na contracapa, o carimbo da Biblioteca Pública de Phoenix contava-nos a história do crime segredado: roubara-o para si. Justificava para sua mente honesta demais ― quando ainda existia a preocupação ― de que o roubo fora necessário para mantê-lo por perto. Seria transferida novamente e nada garantia-lhe a existência de uma biblioteca em sua próxima morada. Ao colocá-lo de volta ao banco, abriram-se às páginas até a mais intensamente marcada. A frase por vezes refletida brilhou à sua frente, como um lembrete de sua própria sentença incorrigível.

Hotel CalifórniaOnde histórias criam vida. Descubra agora