Sangue

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Bibliotecas são como pequenos desafios a serem desvendados. Você dificilmente encontrará num primeiro momento o que está buscando, mas certamente será fascinado por tantas outras coisas ao longo de sua procura. Se houver paciência para entender cada parede do labirinto, descobrirá que o desafio também lhe reserva recompensas valiosas, escondidas nas frestas das estantes envelhecidas e até mesmo caídas embaixo delas. Um dia, Kara descobriu que o garimpo aleatório era muito mais divertido do que buscar por leituras específicas. Por isso, enquanto esteve no lar da Senhorita Aries, tentava terminar as tarefas o tão rápido pudesse e, ao sair da escola, conservava alguns preciosos minutos nos corredores.

Estar no lar da Senhorita Aries era um enorme desafio à coragem. Kara estava com apenas oito anos, talvez sete. Não se lembrava ao certo do dia em que fora para ali. A mulher sempre era sorridente frente aos oficiais, mas bastava que a porta se fechasse para que a face mais cruel fosse revelada. Não liberava as crianças para brincar aos domingos, nem mesmo no pequeno parque ao lado da casa. Dizia que os domingos eram feitos para o serviço que se acumulava ao longo da semana enquanto perdiam tempo na escola. O serviço, é claro, pouco tinha ligação com as crianças. Havia um grande hotel nas proximidades, provavelmente o mais famoso da cidade, e a Senhorita Aries recolhia, aos sábados, toda a roupa de cama usada pelos hospedes para serem lavadas, quaradas e passadas. O serviço não passava por suas mãos, apenas a inspeção criteriosa. O nariz pontiagudo colocado no ombro de cada órfão, enquanto faziam o trabalho braçal. Dado o pequeno tamanho da cidade e o baixo fluxo do hotel, não havia muito a ser feito, mas, ainda assim, a exaustão corroía cada gota de felicidade nos rostos infantis.

Kara demorou alguns dias até compreender a dinâmica do lugar, sendo auxiliada por duas crianças mais velhas que já estavam por lá há mais tempo. Então, não tardou a aprender o mais valioso conselho: concordar era melhor do que apanhar. Para todas as crianças mal criadas e irritadiças, a casa reservava o último quarto, cujas talhas na madeira da porta eram um presságio do horror de estar trancafiado lá dentro.

Acontece que em uma de suas pequenas fugas à biblioteca, Kara encontrou um exemplar surrado da História Medieval. Aprendeu, então, uma curiosidade que vez ou outra vinha à sua mente, nos mais diversos e aleatórios momentos. Descobriu ao folheá-lo que as espadas medievais precisavam ser forjadas em mais de setecentos graus, marteladas intensamente, colocadas na água e, então, levadas de volta ao fogo. Uma espada boa resistiria as pancadas, mas, uma espada perfeita seria moldada a cada uma delas. Sabia que, dentro de si, deveria tomar aquilo como um incentivo. Uma reflexão amarga a qual poderia se agarrar. Já naquela idade, compreendia as labutas da própria existência, nunca tendo tido a oportunidade de não enxergá-las. Ainda assim, o que ecoou em sua mente durante dias foi: "Que diabo de perfeição é essa?".

Crianças inseridas ao sistema nunca poderiam ser comparadas as outras. A não ser que tenham sido adotadas ainda muito pequena, quando qualquer resquício de compreensão ainda estava longe de suas mentes, elas seriam moldadas pela solidão. Ao longo de sua trajetória, Kara conheceu abrigos aceitáveis ― gostaria de ter permanecido mais tempo nesses ― e uma leva de lugares infernais. Nenhum, no entanto, comparava-se à grande casa amarela no fim da Rua Doze. Uma pequena placa gasta com o nome Aries estava preso à caixa de correio.

Não houve um dia, estando na casa amarela, em que Kara não desejou fugir. Planejou algumas vezes, como costumava ver as meninas mais velhas fazendo nos outros lares em que esteve. Foi lá, também, em que ela conheceu a história.

Não bastassem os temores diários que rondavam a vida daquelas crianças, também era repetido em todos os abrigos ― assim que as luzes se apagavam e a porta do quarto era selada em chave ― a história da Bela Senhora.

Hotel CalifórniaWhere stories live. Discover now