Devoção

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Quando Kara completou onze anos, colocaram-na para viver no lar da Sra. Perpétua. As mudanças já não traziam consigo o choque e a ansiedade, havia, a certo modo, uma sensação anestésica de estar sendo levada ― novamente. No entanto, recordou-se por muitas vezes do trajeto feito até lá, como uma memória gravada ao canto da mente na qual esbarrava despretensiosamente. Não importava o momento ou qual era o bendito ocorrido que a fazia rastejar para aqueles enevoados instantes. De súbito, sentia-se retornar ao banco de trás do carro antigo, a cabeça recostada à janela tremia conforme os pneus venciam o declive do asfalto e era possível inspirar o cheiro dos muitos cigarros já fumados ali dentro. O carro, então, virava à direita e estacionava ao fundo de uma rua sem saída, bem à frente de uma casa simples e antiga. A pintura descascada deixava lascas pela parede e a caixa de cartas inclinava-se para o sudoeste, o que fez com que Kara se lembrasse da Torre de Pisa, cuja história havia estudado naquela semana, antes de ser transferida. Perguntou-se, em devaneio rápido, qual seria a primeira a ceder completamente à força da gravidade: a Torre ou a caixa de cartas? Antes que pudesse supor uma resposta, concluiu que independente de qual fosse, ela certamente já teria sido levada dali.

A casa da Sra. Perpétua conseguia ser diferente de todas as outras. Àquele ponto, Kara já vivera em lares suficientes para ter uma opinião certeira quando constatava o destaque. A saleta de entrada ostentava inúmeras imagens em porcelana que ― descobriria mais tarde ― em sua maioria eram santos. A Sra. Perpétua, por sua vez, também destacava-se às outras responsáveis. Ela era contida e silenciosa, quase nunca estava realmente disposta à conversa. Revisava os deveres com Kara e parecia feliz ao constatar não ser necessário muito esforço para que a menina aprendesse. Assim, o tempo que passavam juntas fazia-se ainda mais escasso. Pela primeira vez, Kara não dividia o lar com outras crianças. A casa da Sra. Perpétua era o que chamavam de "lar temporário", um lugar para onde crianças iam quando não havia espaço nos orfanatos ou lares permanentes. Contudo, Kara chegara a conclusão de que todos os seus lares haviam sido temporários, independente do título oficial que carregavam.

Por mais que estivesse grata pela breve paz em viver ali, tendo uma cama só para si e um travesseiro que viu ser desembalado assim que chegou, havia algo dentro de Kara que a perturbava constantemente. Uma pulguinha que vivia prostrada atrás da orelha e a questionava do motivo daquela velha senhora ser uma responsável temporária. Sua vasta experiência ensinara que os responsáveis geralmente recebiam do governo por cada criança que cuidavam e, por isso, acumulavam o maior número possível de pequenos jovens abandonados. Além de constantemente explorarem a fácil e manipulável mão de obra, dando a eles serviços para serem feitos nos horários de descanso. Mas aquilo nunca ocorria no lar da Sra. Perpétua. A velha mulher assobiava enquanto lavava as roupas ou fazia o jantar. Costumava deixar sobre a cama ― que Kara obedientemente arrumava ao se levantar, ainda que jamais tivesse sido pedido ― as pilhas passadas e limpas. Ela também comprou mais peças íntimas e meias de lã grossas que adicionou a gaveta da jovem sem pedir nada em troca. Kara Danvers assustou-se ao pensar que ficaria feliz em viver ali pelo resto de sua estadia no sistema. Em mais de uma ocasião, procurou o que poderia fazer para ajudar a Sra. Perpétua. Imaginando que, talvez, ela poderia recuar da decisão de ser apenas um lar temporário. Mas jamais havia algo pendente a ser feito e ela se viu com tempo sobrando para ler e estudar. Imaginava que a velha mulher devia ser uma tola por não temer que Kara roubasse sua casa ou fizesse coisas ruins, como costumava acontecer e por isso os responsáveis mantinham-se atentos a todos os movimentos. Descobriu saber ainda menos do que imaginava sobre a curiosa senhora. Ao amanhecer de um sábado, cuja noite passara insone lendo o exemplar surrado de Viagem ao Centro da Terra encontrado na biblioteca, tropeçou em uma pequena pilha de livros deixada em sua porta.

A pulguinha que residia atrás da orelha de Kara triplicou de tamanho. Sabendo agora que a Sra. Perpétua estava longe de ser uma velha relapsa, perguntava-se o que mais havia sido silenciosamente notado em sua rotina. Desceu para o café da manhã. Sendo a segunda semana que passava na casa, via-se acostumada a alguns elementos da rotina, como os assobios da cozinha e o tilintar do relógio. A Sra. Perpétua sempre estava acordada quando Kara acordava e sempre ia dormir depois que Kara já havia subido para o quarto. Ela sempre batia na porta antes de entrar e Kara nunca encontrava seus pertences inspecionados ao chegar da escola. A menina sabia que o mais inteligente a ser feito era manter-se em silêncio e desfrutar da breve estadia que ― tinha certeza ― seria a melhor de sua vida. Mas a pulga atrás de sua orelha espreguiçava-se, inquieta, pronta para crescer em mais alguns centímetros.

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⏰ Last updated: Jul 27, 2022 ⏰

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