Purgatório

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Um.

Dois.

Três.

As batidas se repetiam. No início, elas não pareciam mais que uma gota batendo contra o chão de madeira. Não como em qualquer chão em que o gotejar ressona seco, mas exatamente como o chão de madeira, em que a gota parece ser aveludada ao atingir a superfície. Gradativamente, o som se elevou, tornando-se um bater mais insistente. Logo, tampouco poderia lembrar a singela gota. Agora, mais se parecia com o baque de botas pesadas.

Um.

Dois.

Três.

Os olhos de Kara se abriram. Não a Kara que adormecera no quarto 139, sob lençóis macios e bem passados. Não, não. Outra Kara abrira os olhos. Uma jovem menina que não parecia possuir mais que quatorze anos. Ela se olhou no espelho e suspirou, cansada. As bolsas escuras que pesavam no compor de um rosto tão jovem abrigavam muitas noites mal dormidas, acompanhadas de choros silenciosos. O choro contido à garganta é o grito mais alto do sentir. Não corre fluído e não deixa fluir, aprisiona cada partícula de dor ao peito e faz da carne o carrasco da alma. A pequena Danvers bufou. Já estava acostumada, não era sua primeira vez. Pegou a toalha de rosto e a torceu forte, tanto quanto podia. Mordeu-a. Os dentes rangeram pelo esforço, mas ela não parou. As bochechas avermelharam-se e os olhos marejaram. Os ombros tremiam, tensos.

Parou.

Um.

Dois.

Três.

Ela largou a toalha, deixando-a em uma maçaroca abarrotada sobre o balcão da pia. Fechou a torneira que ainda pingava vagarosamente. Por um instante, o barulho roubou toda sua atenção e a perturbou. Estava pronta, precisava estar.

Outra Kara Danvers saiu do banheiro.

Desta vez, um pouco mais velha. Ou ao menos pretendia parecer. As roupas largas escondiam o corpo que pouco a pouco se moldava à adolescência. O moletom surrado era protegido como um bem valioso demais para ser perdido, embora, àquele ponto, já tivesse passado por muitas mãos. Nada era garantido, nada pertencia a alguém. Kara se encolhia em uma cama que era notavelmente pequena, mas a menina se diminuía para lhe fazer servir. Não importava o tamanho, ela logo iria embora. O desejo de permanência ― tanto quanto a esperança de estar ― já não dividiam espaço no colchão fino. Sabia que logo partiria. Não existia no mundo em que conhecia um lugar ao qual pudesse se assegurar. Assegurava-se, portanto, à perda eminente. Todo instante era único e, logo, todo instante de pouco importava.

Um.

Dois.

Três.

O amanhecer se esgueirava pelas frestas da velha janela de madeira quando ela ouviu as botas pisarem forte na escada. Sabia o que viria a seguir. A culpa no olhar do informante sem sorte que daria a ela a notícia triste já tantas vezes revelada. O sentir muito preenchido pela conformidade que mal esperava a tristeza sair para se acomodar. Não havia o que ser feito, ninguém era realmente culpado, apenas acontecia. Através do véu de causalidades, a vida de Kara Danvers escoava de canto a canto.

Mais uma vez, estava em um carro apertado com sua mala pequena demais para carregar uma vida inteira. Os cabelos cumpridos foram amarrados firmemente e repuxavam a pele. Desejava esconder o rosto sob o capuz cumprido, mas não podia. Precisava ser vista e analisada. Olhariam para seu rosto com a dó de quem olha um animal surrado, mas logo a esqueceriam. A bondade tem a duração de uma bateria fraca em corações orgulhosos. Kara Danvers seria posta ao canto, junto às tantas outras crianças esquecidas. Lembrada, apenas, no momento de partir.

Hotel CalifórniaWhere stories live. Discover now