Conflito

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_ Coreia, 1945 _

Eram tempos difíceis para os cidadãos daquele lugar. O que tinha começado como um acordo de libertação tinha se tornado um novo tipo de opressão, uma muito pior do que a anterior, porque buscava não só dominar o território e os corpos dos habitantes. Buscava, sobremaneira, apagar sua história, sua cultura, sua identidade. Forçá-los a abrir mão de si mesmos e assumir um novo alguém, totalmente diferente de quem realmente eram, se mostrava muito mais cruel do que as lutas armadas. Era agir com total bestialidade.

— Nada é pior do que a opressão da mente. — Jung Hoseok dizia para as crianças e jovens presentes naquele porão. — É por isso que estamos aqui. Para evitar que escravizem também as nossas almas.

E então ele seguiu com as aulas, após ver a anuência no rosto de todos os seus alunos clandestinos. Continuou suas explicações sobre a história e a cultura coreanas, falando num coreano impecável, espalhando para aquelas pessoas tudo o que os opressores não lhes permitiam aprender. Enquanto falava, percebia, nas expressões curiosas, o quanto certas informações eram novas e até mesmo assustadoras para parte de sua audiência. Doía-lhe de forma imensurável constatar isso; perceber que os algozes estavam começando a atingir seus vis intentos atingia-lhe como um tiro no peito.

Kim Taehyung observava o amigo de infância durante a ministração das lições. No fundo do porão, encostado na parede e de braços cruzados, escutava toda a falação do mais velho, ao mesmo tempo em que monitorava os lanches, na mesa ao lado. Não havia muito, mas dava o seu melhor para conseguir alguma comida decente, e totalmente coreana, para oferecer às barrigas famintas dos que ali se reuniam. No dia de hoje, particularmente, seria necessário que os alimentos fossem divididos em três partes a fim de que todos fossem servidos, mas, pelo menos, haveria algo. Nem sempre dava conta de garimpar o que era preciso para oferecer as refeições.

— E eu espero que vocês nunca se esqueçam disso que aprenderam hoje. — Hoseok iniciou seu característico discurso de encerramento. — Eles podem tomar nossos corpos, mas nunca levarão nossas almas. Não importa o que nos digam, os nomes que nos forcem a usar, as palavras que nos obriguem a repetir. Nascemos cidadãos coreanos e morreremos cidadãos coreanos. Conhecimento e fé para resistir sem ferir.

— Conhecimento e fé para resistir sem ferir.

Todos repetiram em uníssono, e ao comando do mestre, se direcionaram até o fim do porão mal iluminado, a fim de fazerem a refeição que lhes foi preparada. Taehyung, então, passou a repartir e distribuir a comida, entregando a cada um a sua parte. Após, foi até Hoseok, que permanecia em seu lugar, arrumando suas coisas.

— Às vezes eu acho que eles só vêm até suas aulas para comer. — Disse se aproximando do menor.

— Para a maioria é a única refeição do dia, certamente. — O mais velho se mantinha concentrado em sua atividade. — Mas depois que chegam aqui percebem que há mais do que alimento para o estômago. Não importa muito pelo o que eles vêm, de qualquer maneira. — Olhou de soslaio para o outro, dando um meio sorriso. — No fim, acabam se prendendo ao que é verdadeiramente relevante.

— Você é tão otimista, hyung. — Juntou-se ao outro na arrumação dos materiais.

— Otimismo é necessário em épocas como a que vivemos.

Taehyung apenas anuiu, seguindo no auxílio da arrumação. Enquanto ajudava o mais velho, suas mãos se roçavam vez ou outra e o maior relembrou, enfim, o que o fazia se entregar àquela imensa perda de tempo.

Ele não entendia como o sujeito ao seu lado podia estar tão inerte ante a desgraça que os assolava. Um país estrangeiro estava devastando sua terra natal, tomando as mães e as filhas de toda a população e as levando para longe, forçando homens a lutarem uma guerra em nome de terceiros... Nem mesmo o direito a falar o próprio idioma, ou portar o nome escolhido por seus pais, estava lhes sendo concedido. E o que um homem forte como Hoseok fazia? Dava aulas de história e língua coreana em porões vazios e prédios abandonados, acreditando que, assim, estava ajudando. Ajudando a quem, afinal? Nesse exato momento os japoneses estavam estraçalhando suas terras e seus compatriotas. Em pouco tempo, não sobraria mais nada. Do que eles iriam se orgulhar então?

Não acreditava mesmo na filosofia de resistência passiva de Jung Hoseok. A cada dia sua fé ia diminuindo consideravelmente. No entanto, estava sempre com o rapaz, de ruína em ruína, quebrando as normas selvagens impostas por seus inimigos. Fazia-o por conta de um único motivo: amava Hoseok. Não como se ama um amigo, ou um irmão. Amava-o de uma forma que não poderia deixar alguém sequer desconfiar, porque ninguém compreenderia seu "desvio". Nem ele mesmo entendia como podia amar a um homem do mesmo jeito que, supostamente, deveria amar uma mulher. Mas Hoseok não era qualquer um, e o entendeu. Não só o entendeu, como aceitou e, sem que esperasse por isso, o correspondeu. E era em nome desse sentimento que estava ali, apoiando-o ainda que contra os próprios princípios.

— Dongsaeng... — Hoseok disse ao guardar o último objeto. — Eles já se alimentaram. Vamos nos despedir para que possam ir embora.

O jovem, mais uma vez, concordou com um gesto de cabeça, e se encaminhou para onde os outros os esperavam, a fim de receberem o código para descobrirem o local da próxima reunião e darem até logo para os dois homens. Taehyung esperou que tudo ficasse acertado e saiu levando as crianças e adolescentes escada acima, em fila indiana, para que saíssem e dessem espaço para que os vestígios das aulas lecionadas fossem ocultados. Esperou o último aluno partir, pegou algumas pedras e "trancou" o portão enferrujado com elas. Virou-se para descer e foi surpreendido com um abraço de Hoseok.

— Não ouvi você chegar, hyung. — Falou ao se aninhar nos braços do rapaz.

— Eu fiz questão de ser sutil. — Beijou-o na bochecha, próximo ao queixo. — Quis surpreender.

— Conseguiu.

— Pensei em estar com você.

Taehyung ergueu a vista para o encarar. Deu de cara com o sorriso amplo e carinhoso de Hoseok.

— Aqui? — Soltou-se do rapaz, o encarando com uma sobrancelha erguida. — Agora?

— Oh, não! — Riu baixo. — Aqui não. No nosso lugar de sempre. Aceita?

— Logo hoje... Não vou poder. Tenho obrigações com minha família. Amanhã, tudo bem?

— Ah... Certo. — O sorriso se desmanchou. — Vamos arrumar tudo o mais rápido possível, então. Não quero que se atrase.

— Por mim eu não iria, hyung. Meus pais vão receber um dos chefes da ocupação. Namjoon hyung vai se alistar.

— Ele decidiu-se mesmo por servir o opressor? — Afastou-se, dando as costas para o mais moço.

— Você sabe que ele tem adoração por eles.

— Sim, eu sei. Infelizmente. — Seguiu andando de volta para onde antes ministrara a aula. — Nunca esperei que meu amigo fosse se voltar contra si mesmo.

— É como se ele estivesse esperando por algo assim a vida inteira. — Seguiu o mais velho, descendo com ele as escadas. — O hyung me enoja. Todos em minha casa, na verdade. Precisa ver meu appa, hyung... Preciso tomar cuidado o tempo todo para não usar palavras coreanas, ou serei castigado.

— Sinto muito por isso. Por sorte meu primo tem pensamentos libertários como os nossos. — Atingiu a sala improvisada. — Fiz bem em sair da casa de meus pais.

— Pensamentos parecem ser tudo o que você e Seokjin hyung têm. É preciso mais que isso.

— Não comece, por favor. — Pediu, se virando para o rapaz.

— Não vou começar, não se preocupe. — Respondeu, forçando-se a sorrir. — Vamos arrumar tudo isso e recolher os materiais. Eu realmente preciso ir embora o quanto antes.

Hoseok suspirou, curvando os lábios num breve sorriso, e anuiu. Os dois, então, iniciaram a arrumação do lugar.

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É isso! Capítulos curtinhos, como eu falei. Obrigada a quem chegou aqui, e até o próximo!

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