Imprudência

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A reunião familiar tinha sido uma desgraça. Fora dolorido ver a família inteira falando um idioma estrangeiro com naturalidade forçada, tentando fingir que tinham nascido com aquelas palavras estranhas já na ponta da língua, exibindo uma gama de palavreados como se deles fosse. Foi humilhante ver os pais e o irmão oferecendo hospitalidade a um representante daquele ditador vil e enganador, como se fosse o grande salvador da nação coreana.

Cada sorriso que foi compelido a dar, cada palavra e expressão japonesa que teve de usar, cada vez que precisou chamar o irmão por outro nome que não o escolhido ao nascer... Ver a família atestar felicidade ao enviar o filho mais velho para lutar do lado do inimigo, e perceber o quanto o seu hyung demonstrava ter encontrado satisfação nisso... Tudo isso lhe deixou machucado, num nível de profundidade equiparável com a própria morte.

Deitado em sua pequena cama, com todas as fontes de luz apagadas, Taehyung odiava. Nenhum outro sentimento descreveria melhor o que emanava de sua aura. Odiava o que vinha acontecendo dentro de sua casa, nos seus arredores, por todos os cantos que conhecia. Irava-se com a aceitação, a parcimônia, a entrega fácil e sem grande resistência. Detestava quem se rendia. Abominava quem não fazia nada, quem simplesmente aceitava pacificamente toda aquela falta de respeito, aquela vilania. E o que lhe atormentava mais ainda era ter que enfrentar todo o ódio e rebeldia calado. Afinal, com quem falaria? Com a família? Eram todos vendidos. Com os amigos? Nunca tivera tantos assim, mas os que lhe constavam não passavam de covardes, de fracotes. Nem mesmo Hoseok, para quem ainda reservava espaço no coração e direcionava admiração, lhe era de grande serventia, com toda aquela conversa bonita de preservação da alma e eterna passividade. Que tipo de conquista é feita através da inércia? Taehyung não conhecia, ao longo da História da humanidade, nenhum caso de vitória por imobilidade.

Enervado pelos acontecimentos recentes, sem conseguir dormir, decidiu que o melhor era sair dali. Não aguentava mais a energia pesada que irradiava das paredes que abrigaram, por algumas horas, uma das encarnações do demônio que lhe atormentava. Não conseguia lidar com o fato de saber que os móveis do lugar que chamava de lar tinham servido àquele homem, que os talheres de prata de sua avó tinham sido tocados pelos dentes enegrecidos e lábios ressequidos de um maldito militar japonês.

Levantou-se com cuidado do colchão fino, vestindo-se com a melhor roupa que lhe foi possível encontrar no escuro. Tomou seu calçado nas mãos, e, pé ante pé, deslizou pela janela do quarto, ganhando a rua. Calçou-se, por fim, e sentou-se sob a sombra de um arbusto, a fim de se esconder. Fechou os olhos e pensou numa maneira inteligente de poder caminhar pela cidade sem ser preso por infringir o toque de recolher. Só precisava espairecer, se sentir vivo, livre. Ainda que fosse uma sensação falsa, a queria, por poucos segundos que fossem. Não tinha intenção de ser aprisionado por seu opressor também de forma física.

Imaginou a rota que deveria tomar e, inspirando fundo, abriu os olhos e se levantou, a fim de iniciar seu percurso. Na mesma hora, viu o vulto de uma pessoa se escondendo atrás de uma árvore. O movimento da figura, contudo, foi tão rápido que pensou ter tido uma alucinação. Ia convencendo-se disso quando a "miragem" reapareceu, indo ligeiro para uma outra árvore, escondendo-se uma outra vez.

Taehyung se agachou novamente, apertando os olhos, avaliando a situação. O que estaria acontecendo? Não parecia ser um dos invasores, posto que estes não andavam furtivamente pelas ruas durante o toque de recolher. Ao contrário, ostentavam suas fardas, exibiam suas patentes e deixavam que suas armas brilhassem sob a luz do luar, dando todos os sinais de sua massiva opressão.

No entendimento de Taehyung, aquela pessoa, tal qual ele próprio, era alguém nascido na Coreia, que por qualquer motivo, também precisava estar fora de casa naquele momento, mas, devido à sua liberdade cerceada, só podia faze-lo aos moldes de um criminoso procurado, mesmo que fosse inocente.

A pessoa que avistara passou a caminhar de novo, e a curiosidade de Taehyung, naturalmente atiçada, misturada ao enfado e ao sentimento de rebeldia que lhe acometia, fizeram com que o rapaz achasse uma boa ideia se colocar no encalço do desconhecido, a fim de saber quem era, o que buscava, por que estaria desobedecendo ordens naquela alta hora. Assim, o jovem coreano se pôs a seguir a figura.

Poucos minutos de perseguição lhe fizeram notar, surpreso, que se tratava de uma mulher. Atingido pela total descrença, posto que nunca vira alguém do gênero feminino arriscando-se daquela maneira, a decisão de abandonar a rota que mentalmente traçara instantes atrás se tornou ainda mais forte. Algo dentro dele lhe dizia que valeria à pena trocar sua andança em busca de tranquilidade por aquela aventura inusitada.

Não demorou muito e viu a mulher adentrar numa rua distante, saindo totalmente de sua visão. Correu, a fim de não a perder. Quando a reavistou, foi somente para saber o rumo que tomaria para continuar a perseguição, uma vez que ela sumiu rapidamente no que parecia ser uma reentrância. Esgueirando-se pelos muros e paredes, aproveitando sombras de árvores e a agilidade de seus pés jovens, Taehyung seguiu o rastro deixado, e quando deu de cara com o ponto em que a criatura sumira, notou ser uma espécie de galpão abandonado.

A passos macios avançou para dentro do ambiente, tomando cuidado para que seus movimentos não ecoassem ali. Uma sensação de medo passou a percorrer sua mente, porém, sentiu que já tinha se arriscado demais para simplesmente desistir e regressar. Nesse pensamento, prosseguiu. Não muito tempo foi necessário para que o ponto final de sua empreitada fosse encontrado. Ao fim de uma parede, viu-se, enfim, diante do término de sua caminhada.

Tão logo se virou, deparou-se com um grupo de pessoas reunidas, sentadas em círculo. Pensou em recuar, em se esconder detrás da parede, porém, era tarde demais. Foi rapidamente avistado por alguém que, mesmo na penumbra, pôde visualizá-lo.

Um grito foi escutado, reverberando pelo oco do lugar. Taehyung, por um segundo, ficou paralisado, mas assim que percebeu alguns dos que ali estavam se levantando, deu dois passos para trás e conseguiu desestagnar, botando-se a correr. Não era muito bom nisso, não fazia o tipo atlético, porém, ainda assim, pensou que seria a melhor opção. Não sabia quem eram, o que faziam ali.

A adrenalina de se safar de um perigo eminente pôs combustível nas solas de seus pés, mas não foi o suficiente para o retirar dali. Acabou sendo alcançado, e, contra sua vontade, levado para onde estavam os outros. Amedrontado, de olhos arregalados pelo pavor, e também para melhor enxergar, foi jogado sem cuidado no meio do círculo, sendo colocado de joelhos.

Viu-se observado de maneira raivosa, com repugnância e desprezo. A pouca luz do local fazia as expressões dos que o olhavam parecerem ainda mais ameaçadoras. A urina quente lhe desceu pelas coxas, formando uma poça sob as rótulas que lhe serviam de apoio.

Naquele instante apenas duas coisas rondavam sua cabeça: o fato de ter sido extremamente estúpido, e a bela imagem do sorriso de Hoseok.

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Obrigada a quem chegou aqui, e até o próximo! ;**

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