00: Clara Schumann

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1.288 words.

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Jim Morrison disse uma vez que quando você é um estranho, os rostos vêm de fora da chuva. Quando você é um estranho ninguém lembra o seu nome.

Ocorreu uma época onde a poeira da ópera era próspera a Clara Schumann, se eu fechasse os olhos era capaz de vislumbrar o fantasma da poesia e da música tocar a mesma morbidez intensa, carregando a  sensação de ter os ossos comprimidos na controvérsia das partituras; talvez essa deve ter sido Clara, talvez a sobreposição agonizante em seus espetáculos deva ser fiel a vontade de não mais existir.

Na noite em que soube da morte de Yoongi, escutei Clara Schumann, Beim Abschied, brasas púrpuras e solitárias estrelas; só porque Yoongi dizia que a dramaticidade dos Schumann envelhecia boas almas igual vinho. Eu ouvi o envelhecimento doente das notas apodrecer junto ao cadáver do meu melhor amigo. 

E ainda assim, eu podia vê-lo.

Desci para a cidade baixa de Yokohama, um aglomerado de casas e prédios vandalizados carregando o peso em massa da maior parte marginalizada da cidade. A terra sem lei, os restos de guerra, a passagem para o infinito desprezo social. A parte baixa de Yokohama era, em uma medida periódica, familiarizada com a descrença do alto escalão contra a população pobre, que ia desde velhos trabalhando em mercados ilegais a jovens e crianças roubando e interceptando a morte da maneira mais precária possível para sobreviver. E também tinha boa música, boa música além de talentos que morriam antes de um contato com a possibilidade.

Eu sabia que não era bem-vindo a parte baixa, muitos inimigos te comem vivo quando percebe que você veio "lá de cima" – um termo engraçado, como se Anjos descessem do céu por ordem divina –, mas naquele tempo eu só era o vadio que abandonou majoritariamente Yoongi e sua irmã, traindo a irmandade da pequena comunidade justaposta ao comodismo de se auto ajudarem.

Yoongi era um prodígio, não podia negar o viável talento de meu amigo, mesmo as chamas de uma liberdade queimando posteriormente através de falsas esperanças. A realidade esmaga mais do que gostaríamos, ainda assim, prevalecia um pequeno desejo, bem pequeno.

Nem sempre há tempo para mudar o mundo com suas idéias. Ele dizia. Mentes potencializadas mudam o mundo. Sempre achei interessante a maneira otimista de um sonhador.

Um gemido saiu pelo meus lábios assim que a agulha penetrou na veia, então, como um disco de vinil tocando Clara, a paz apoderou do meu sangue. Estava escorregando nas minhas veias, delicado, segundos enxergando o paraíso para então se jogar dele.

Naquela noite eu corri para a casa de show mais distante da cidade baixa, Für Elise, algo assim, estava escrito na placa. Era grande e, para minha surpresa, estava quase vazia. Mas tinha Doc, ele sempre estava lá por ser devoto ao chefe, era estranho pensar nele e sua obsessão, por isso sempre fui apto a ignorar a sua existência. 

— O que te traz aqui? – Ele perguntou mais para passar o tempo, Doc não gostava de mim.

 Bebi um gole do whisky oferecido por ele, sentindo o mundo à minha volta entortar e cair. Cair. 

— Oh. Parece que Lupin está em...Reconstrução? Eu queria ir até lá.

Doc contorceu os olhos.

— Houve um incêndio meses atrás. Esperava encontrar o que? Uma placa escrita bem-vindo?

Sorri sem muito ânimo.

— Memórias, Doc. Memórias.

Ele suspirou, querendo dizer algo mais, mas foi ligeiramente interrompido por minha falta de afeto quando puxei a garrafa e caminhei a passos lentos pela casa de show escura.

Fiquei nos fundos do bar por um longo tempo, reconhecendo o que tocavam, cantando junto aos ritmos sublimes e acordes desafinados. Foi a primeira que notei a minha ruína. No entanto, enquanto olhava para o borrão de rostos a minha frente, a ausência preencheu um espaço profundo tocado levemente pela raiva, frustração; Havia uma memória possessa que deixei afundar no âmago, meus dedos tremiam e o whisky já não tinha mais sabor. Foi um reflexo curto, mas suficiente para minha boca salivar e o choque preencher curtamente minha percepção de que não havia lugar no mundo para mim.

Eu vi Yoongi como um vislumbre em cima do palco, a sutileza da sua voz me chamou tão perto, porra, estava muito perto. Em algum momento naquela noite, levantei e corri para ele, em algum momento o palco ficou sob meus pés, em algum momento algo saía da minha boca junto a agilidade das minhas mãos pousando nas cordas da guitarra.

Em algum momento era eu e ele, e foi então – em meio a embriaguez enchendo o corpo de um homem suposto a ganâncias cheias de tragédia –, que entendi a falta. A falta dele.  E a morte dele de repente se tornou um fardo insuportável de carregar.

Era como se Schrodinger descesse no espaço de uma palma e enlaçasse uma corda ao que era real e irreal. Eu enxergava Yoongi como um humano abraçando alguém sem alma. E vê-lo era tão amargo que eu só podia fazer o que restava: cantar. Porque em uma época vivemos disso, de música.

Então cantei. Em algum momento naquela noite, cantei. Até sentir a dormência na voz, até tudo cair. Cair...

Até que minha presença fosse ocultada por mãos ferozes me arrastando para fora, houve sangue, houve uma dor intensa depois de um tempo, naquele cenário potencializado a destruição, chovia, chovia forte quando meu corpo foi jogado na calçada, aos fundos da casa de show, em um beco estreito e corrosivo com a iluminação falha, o cheiro de lixo e rato apossando os meus sentidos por um longo tempo.

Eu sabia que estava sorrindo como um eloquente e desejando sentir alguma coisa além do olhar martirizante de Yoongi.
 
13/03. Nessa data eu havia pegado um táxi e descido para Yokohama, nesta data recebi uma caixa de Jooyoung após ela me avisar que seu irmão havia se suicidado. Ela bateu a porta na minha cara e pediu para que eu morresse também. Nesta data, eu já sabia que não me restaria nada a partir dali.

Minha vida, desde o meu nascimento até o dia da minha morte, foi um vazio incompreensível e infeliz.

Então ele apareceu.

Jeongguk se tornou parte do meu ambiente de amargura quando ele se contorceu e xingou. Ele estava encostado na parede – do outro lado – com uma garrafa de vinho na mão e um cigarro nos lábios finos e inchados, a voz saiu abafada, carregada por repreensão e raiva pela chuva ter apagado seu cigarro.  Ele jogou o que restou do cigarro no chão e pisou em cima, bebeu um pouco de vinho antes de jogar a garrafa para longe. O som dela quebrando tornou-se um eco distante na minha cabeça.

Sua aproximação foi embaçada pela minha visão distorcida, mas não consegui evitar de prestar atenção quando ele pegou, no espaço de tempo em que se aproximava, um caderno. Meu caderno. Jeongguk estendeu o caderno protegendo-o inutilmente da chuva, ajoelhado, me encarava com certa atenção de alguém que ainda analisava seu alvo antes de ter certeza se deveria atacar ou recuar, um brilho ínfimo percorreu os olhos castanhos. O mundo inteiro dançava na palma de suas mãos.

Jeongguk gostava de chapéus e roupas sociais, tinha olhos vívidos e voz delicada marcada pelo sotaque francês, como um anjo, Nívea, me lembro bem. 

— Você deixou cair.

Era feito de poesias soltas de blues igualando Ícaro e seu desejo; não como Chopin, como Grieg; como uma massa intensa, arahabaki e suas chamas. Morrison podia dizer que estranhos não têm o nome lembrado.

Mas Jeon Jeongguk nunca foi um deles.
    
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"Lembro da sensação
É como pólvora em meu sangue
Você me faz sentir assim, como se o mundo fosse consumido por chamas, e não restasse nada além de vestígios"

Não Mais Humano | TaekookOnde histórias criam vida. Descubra agora