24. Mentira Paliativa

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Para o sofrimento interno, existem apenas duas opções: a mudança penosa e a mentira. A primeira é a cura, a segunda é a medida paliativa; é claro que a cura sempre é a mais desejável, mas seus efeitos colaterais podem colocar à prova o que consideramos ser a saúde. Por isso, optamos pela mentira, ela engana, retém a agonia, estimula o espírito e preserva a doença.


João não precisou das pálpebras para saber que estava acordado, somente a existência de seu pensamento, a cogitação de sua consciência, provava que era real. Pela primeira vez, estava extasiado com a aspereza do chão pedregoso sobre o seu rosto, ainda de olhos fechados, deleitava-se com o sentir como se fosse uma criança recém-nascida, ou melhor, um jovem recém libertado.

Hesitava em abrir os olhos, aquele mundo parecia muito luminoso para ele, mesmo sabendo que era um medo irracional, não se apressava em sair daquela escuridão, pois não precisava dos olhos para ver aquelas duas fagulhas de luz amarelas frágeis ao seu lado, o seu novo amigo, um espírito ínfero, o acompanhara de seu mundo para o dele.

— Ei! Que cara nojenta é essa, João?!

Ele imediatamente pulou e levantou-se como um soldado que é flagrado em folga, mas o susto decorreu-se por uma sensação estranha que teve em seu ouvido ao não identificar a quem pertencia aquela voz que o chamava, mas mesmo assim conhece-la.

— Me desculpa pelo o que aconteceu, ter continuado essa história foi um erro.

A luz invadiu seus olhos como em uma forte ventania. Rapidamente aquele beco ermo transformou-se em uma experiência completamente diferente para João, ele, ao mesmo tempo que sabia que era o mesmo, havia passado por uma transformação, o cheiro de podridão era intenso e suas narinas já não estavam tão acostumadas àquilo, provavelmente porque tinham um teor diferente. A temperatura em sua pele, junto com a umidade, envolvia seu corpo como um casulo mórbido ou um abraço gentil, despretensioso e carcereiro. Mas nada se comparava a figura na sua frente, o cheiro de podridão se neutralizava por seu perfume suave de cola branca, aerossol sintético e tinta em seu cabelo molhado.

Freitas estava diante do mesmo garoto que vira antes de desmaiar, mas ele não sabia se ela era a mesma, seu rosto parecia maior, quer dizer, parecia ter mais elementos nele, não parecia comum, não era constituído somente de dois olhos, orelhas, um nariz e uma boca, ela também tinha covinhas que brotavam juntamente de seu sorriso timidamente largo, um queixo arredondado com um pequeno corte de um ferimento antigo, sobrancelhas grossas, mas falhas quando chegavam nas pontas, cílios alongados que tentavam esconder as olheiras arqueadas por de baixo dos olhos amendoados, além de vários outros detalhes, um brinco de latão pintado de rosa que cobria parcialmente uma cicatriz que ia de uma extremidade à outra em sua orelha esquerda, o que não dava para se cobrir com ornamentos, fazia-o com suas mechas onduladas, pintadas da mesma cor que, nesse exato momento, foram realocadas timidamente como escudos após ser encarada.

— Eu... me desculpei, tá bom? Você está bem...? — Freitas falou e continuou falando, mas João mal compreendeu uma palavra.

Conforme a voz de Freitas passava por João, suas pernas tremiam, seus olhos lacrimejavam e seu corpo arrepiava. Sem mais se conter, conter quem ele era agora, atirou-se em cima da garota em um abraço desesperado, mas forte e firme como quem protege aquilo prestes a perder.

— Me desculpa! — Clamou João.

— Não... quer dizer... sou eu quem deve se desculpar, fui eu que te meti nessa furada.

— Me perdoa, por favor! — Disse, abraçando-a mais forte.

— João?!

— Eu não devia ter feito aquilo, me desculpa!

Cinéreo: As Luzes da Cidade EscuraWhere stories live. Discover now