28. Perseguidores do passado

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Todos nós somos moldados pelo passado, nossas qualidades, nossas vontades, nossas dores. Algumas pessoas confessam viver pelo passado, outras escondem ou, sequer, sabem da importância daquilo que já viveram. Mas não há como fugir ou perseguir o passado, ele já está aqui, baseando o presente e construindo o futuro, basta prestar atenção nele.



— Eu ouvi os gritos — disse, Glória ainda abraçando João —, o que aconteceu aqui?! Onde está a Andreza?

— Eu não sei... — respondeu, ainda com o raciocínio em recuperação — Por que está aqui?

O garoto sabia a resposta, era difícil tirar da memória alguém com características tão fortes quanto ela, apesar de só tê-la visto uma vez, sabia que ela era a proprietária da casa. Esse não foi o teor da pergunta, não era quem ela era, mas o que a fazia estar ali, socorrendo um desconhecido e, pior, alguém vinculado à Andreza, uma pessoa que todos, principalmente ela, já sabia que era problemática.

— Meu nome é Glória, eu moro no andar de baixo, nos vimos algum tempo atrás, mas você está muito diferente. Você está bem?

O garoto sorriu, esse sorriso ocorreu por dois motivos: o primeiro, foi para disfarçar a sua decadência, apesar de tudo, ainda queria manter as aparências, evitar que seus segredos fossem descobertos; o segundo, esse muito mais proeminente, foi o próprio escárnio da questão, quer dizer, como um jovem, ferido, com uma cicatriz enorme no rosto, pálido, paranoico e com uma garrafa de bebida na mão poderia estar bem? Ao menos, a pergunta parecia ser sincera, a falta de percepção da mulher era cativante em sua inocência, seu olhar terno era inexplicavelmente agradável, tão calmo e empático que chegava a ser persuasivo ao ponto de João abaixar a sua guarda e a derramar lágrimas.

Não eram lágrimas escandalosas, na verdade, o garoto não compreendia o porquê de elas estarem ali caindo, não estava tão triste ou desesperado quanto antes, não havia motivos. Mesmo assim, foi recebido com mais um abraço forte, lembrou-se: era de sua mãe, Isabella, com quem ela se parecia, talvez não de essência, mas sua aparência física e esses gestos pontuais, aos olhos de João, eram idênticos à mãe que partira há tanto tempo.

Ainda no abraço, olhando para frente, o garoto viu que, atrás de Glória, seu filho, aquela criança tímida e estranha, apática e de ombros curvados o encarava de cima à baixo em uma expressão confusa que misturava surpresa, nojo e raiva. Talvez porque João estava invadindo um espaço restrito entre ele e a mãe, pelo visto, era um espaço muito precioso, já que estava apertando um dos braços como se segurasse para não agredir aquele intruso que era o protegido de Andreza.

...

Os próximos minutos passaram alienados na mente do garoto, talvez pelo efeito do gole que deu da bebida ou por causa de todo o resto, o seu corpo e mente existiram como um barco à deriva durante esse tempo, ao lado de Glória, sentia-se à vontade para fazer isso. Tudo o que prestara atenção nesse tempo foi que lhe ofereceram comida, nada muito bom, mas, com certeza, muito mais saboroso e nutritivo do que estava comendo, quando, sequer, comia. Além disso, descobriu que a criança que o ameaçava chamava-se Antônio, lembrou-se de Anthony, uma coincidência desagradável, na verdade, já havia ouvido seu nome antes, tinha sido chamado de "super Antônio" pela mãe ao incentivá-lo a fazer uma prova que poderia leva-lo a morte cerebral, segundo Andreza. Eram muitas memórias confusas, mesmo não fazendo tanto tempo, sentia muita dificuldade de se lembrar das coisas antes de seus delírios com Silva e Antony, como se um nevoeiro ocultasse seus pensamentos passados.

Em relação à prova que a criança iria fazer, ela já ocorrera naquela manhã, parecia ter ido bem, pelo menos, era isso que João suspeitava pelo clima animado da casa em que fora recebido, provavelmente, isso também explicaria a generosidade com que foi tratado. Entretanto, a prova teria uma segunda parte na manhã seguinte, por isso, todos foram dormir cedo, João, mesmo sem ter que fazer prova, foi o primeiro a dormir, se é que, nessas últimas horas, já não estava.

Cinéreo: As Luzes da Cidade EscuraWhere stories live. Discover now